Wednesday, March 01, 2017

Mestre Egberto Gismonti, 70 anos



Eu me lembro da Grace Slick, do Jefferson Airplane, falando do deslumbramento que era estar em estúdio bem equipado, eles se perguntando, e pondo em prática, coisas como 'E se a gente apertar esses dois botões ao mesmo tempo?" Claro que eles apertavam outras coisas também, muitos aviõezinhos, o que em muito contribuiu para tanta euforia. Creio que ela se referia ao After Bathing at Baxter's, de 1967.

Eu me lembro um pouco disso ao ouvir o Egberto Gismonti de 1984, chamado por alguns de Bandeira do Brasil. Para muitos o disco pode ser dividido em duas partes: uma eletrônica, com Gismonti se encharcando de sintetizadores, mesmo nos vocais e na bateria (coisa que costuma incomodar até fãs de progressivo) e outra a acústica, orgânica, contumaz. Muita gente deve ter torcido o nariz big time, porque parece que ele está mesmo apertando um botãozinho aqui e outro ali, e muitos terão que essas duas partes do disco se misturam tão bem como água e óleo.

Eu acho o equilíbrio perfeito. Ou o desequilíbrio perfeito. Ou o equilíbrio imperfeito. Claro que isso depois de sabe-se lá quantas audições. Também eu, em 1985, ouvidos ninados com Bacamarte e Premiata, estranhei um bocado. "Coração da Cidade", "Festa Brasileira", aquela barulheira.

Há momentos, como a passagem de "Sol no Asfalto" para "Mambembe", que o equilíbrio imperfeito aparece como que em milagre: aqueles acordes de sintetizador aparentemente aleatórios e sobre eles surgem o violão e o sax tenor de Nivaldo Ornelas.

E há a cítara. Com ela, Egberto atinge, mole, os píncaros de "Palhaço" em "Carta Marítima" e na profunda e dorida "Cigana". E com o piano (mas sempre com os sintetizadores, presentes em todas as faixas) e a voz de Marya Bravo, nos faz chegar às pazes com a vida em "Caravela".

Comprei este disco em 1985. Vivia-se momento de grande euforia pelo fim da odiosa ditadura. O gênio do Carmo soube captar bem isso desde a capa deste disco genial. No interior da capa dupla, Tiradentes, Dorival, Mário, Cabral, Glauber, Gandhi, Pessoa, índios, Villa-Lobos entronizado no alto do Municipal, Pedro Nava (!), Clementina. Todos pensam ou falam o Brasil.

Tão diferente hoje. É preciso ouvir muito "Cigana" e "Caravela" e "Carta Marítima" e "Coração da Cidade" e "Passe de Música" e "Força Lascada" e "Festa Brasileira" e "Mambembe" e "Sol no Asfalto" para não sucumbirmos ao Drummond destes versos:

"Assim, noturno cidadão de uma república
enlutada, surges a nossos olhos
pessimistas, que te inspecionam e meditam:
Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,
o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde
a um mundo muito velho"

Viva Egberto, setentão neste 2017.

PS: A estátua do índio em frente ao Amarelinho é aquele monumento confuso, certo?

Não tenho por hábito incluir links para álbuns completos, aliás jamais fiz isso e uma vez mais resisto à tentação. Aqui talvez até fosse justificável, de vez que parece que este disco nunca saiu em CD....


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