Friday, September 30, 2011

O Filho Eterno

Enfim li O Filho Eterno, do Cristovão Tezza. Lembro-me de que quando comentei com uma amiga acerca da condição do Dante (recém-descoberta), ela pronto perguntou: "Você já leu O Filho Eterno?" Não tinha, e relutei. Enfim.

Chega a ser pueril que eu selecione, de um romance extraordinário, duro e corajoso, um trecho lá do final sobre... futebol. Mas esta coisa nenhuma que, como se lerá, ajudou na inserção do Felipe (é ele o filho eterno) no mundo, também aproximou-me deste mesmo Felipe, personagem, ser de papel, mas também ser de carne e osso, torcedor apaixonado do Atlético Paranaense e colecionador de camisas de futebol. Falarei disso depois.

Bem, o trecho foi também selecionado porque poucas vezes (if ever) vi o ludopédio assim tão bem descrito...

"O futebol, esse nada que preenche o mundo, o pai imagina, logo o futebol, uma instituição de importância quase superior à da ONU e que ao mesmo tempo congrega em sua cartolagem universal algumas das figuras mais corruptas e vorazes do mundo inteiro, um esporte que onde quer que se estabeleça é sinônimo de falcatrua, transformado num negócio gigantesco e tentacular, criador de mitos de areia, a mais poderoasa máquina de rodar dinheiro e ocupar o tempo jamais inventada, a derrota final das inquietações do dasein de Heidegger, o triunfo definitivo das massas, o maior circo de todos os tempos, vastas emoções sobre coisa alguma -- o pai vai se irritando sempre que pensa, escravizado também ele àquela dança defeituosa que jamais completa mais de cinco lances seguidos sem um erro, um esporte que sequer tem arbitragem minimamente honesta até mesmo por impossibilidade do olhar dos juízes de dar conta do que acontece (em todos os jogos do mundo acontecem falhas grotescas), e no entanto urramos em torno dele, a alma virada do avesso -- pois o futebol, essa irresistível coisa nenhuma, passou lentamente a ser para o Felipe uma referência de sua maturidade possível" (pp. 218-219)




(Meu filho eterno, já quase preso a essa coisa nenhuma...)

Tuesday, September 27, 2011

Oa Azulejos do meu Bairro

Como hoje se derrubam mais casas por aqui do que árvores na Amazônia, passa o Ingá por célere processo de descaracterização. Em sua volúpia de arrecadação, a prefeitura não apenas permite como encoraja que as casas do bairro, amiúde importantes para o patrimônio e o imaginãrio espiritual dos moradores, deem lugar a espigões da Cyrella e da Soter.

A questão transcende meu lado romântico e afeito às questões relativas ao patrimônio. Não se trata de querer engessar um bairro. Tal veticalização (ou adensamento ou copacabanização, como queiram) ocorreu e ocorre no mundo inteiro. Nesta mesma cidade, não é o Ingá o único bairro a sofrer isso, haja vista Santa Rosa e São Francisco, verdadeiros canteiros de obras. Mesmo o Cubango, que esses empreiteiros marqueteiros de merda querem agora chamar de... Jardim Santa Rosa!

Não se trata apenas de preservação ou preservação como fim em si. O problema é que as licenças para novos prédios são concedidas sem que se façam estudos de impacto e obras de infra-estrutura. Jamais me esquecerei de certa segunda-feira em que voltávamos do médico do Dante em Botafogo: gastamos mais tempo no trânsito da Visconde e Morais do que durante todo o trajeto no Rio!

Estas fotos, portanto, têm valor estético e documental. Não é necessário um poder nostradâmico par afirmar que todas (sim, todas) as casas daqui virarão pó nos próximos meses.

Com alegria e pesar as reúno aqui. Foi preciso um certo olhar amoroso-arqueológico para encontrar estes azulejos tão bonitos no meu bairro.


Detalhe de uma fachada na Fagundes Varela, com azulejos em relevo:

Singelo azueljo no muro entre duas casas:

Não eram incomuns varandas assim. Os azulejos verdes eram constante:

E as varandas ficavam ainda mais bonitas se, para além dos azulejos verdes, tinham ainda outros como friso:





Nem sempre eram / são verdes:

Estupenda azulejaria em casa da Fagundes Varela:



E este friso, com detalhes em relevo. Em casa onde hoje funciona um pet shop:

Viva o Rock Progressivo Italiano!


Embora o ano de 1970 tenha presenciado o surgimento de alguns discos interessantes, com as estreias do Balletto di Bronzo, Circus 2000, Formula Tre e Trip, parece-me apropriado demarcar 1971 como o ano inaugural do rock progressivo italiano. Neste ano
surgem o Dolce Acqua (Delirium), Concerto Grosso n°1 (New Trolls), L'Uomo (Osanna), In the Beginning (Nuova Idea), Uno (Panna Fredda), Volo Magico n°1 (Claudio Rocchi) e La Bibbia (Rovescio della Medaglia), dentre outros. Mais importante, bandas beat tornam-se progressivas, seja por apenas um disco (infelizmente), como o I Giganti (Terra in Bocca), seja por toda uma carreira, como o Le Orme (Collage).


Isso significa que neste ano do Senhor de 2011 o rock progressivo italiano torna-se um belo quarentão, o que não pode passar em branco.

Pretendo, como pálida homenagem a esta riquíssima cena do rock progressivo, escrever uma série de posts de modo a divulgar um pouco músicas, discos e bandas que há anos admiro, pesquiso, leio, vejo. E, sobretudo, nunca canso de ouvir.

Para começo de conversa, pensei em uma lista com as melhores músicas. Logo percebi que juntar "Zarathustra" com "Dolce Acqua" era meio como a alhos bugalhos juntar. Assim, de uma lista fizeram-se duas: suítes e canções.

Toda lista é idiossincrática e, amiúde, chama mais a atenção pelo que não está lá. Enfim, se sua música preferida não está aqui, melhor, contribua, ou crie a sua. Em alguns casos, era quase ímpossível escolher apenas uma música da banda. Pense o Biglietto, ad exempio. Em que "Il Nevare" é 'melhor' que "Confessione" ou "L'Amico Suicida"? Em nada, gosto tanto de uma quanto de outra. O que não podia era o Biglietto ficar de fora.

No caso das suítes: em alguns casos, temos em mãos realmente uma suíte, dividida em partes etc e tal. Em outros, a música é suíte só porque é longa? Discussão válida, mas que deixo para um segundo momento. Vamos a elas, em ordem absolutamente aleatória.


CANÇÕES - TOP 20

1) AQUILE E SCOIATTOLI - Latte e Miele
2) FAVOLA - Reale Accademia di Musica
3) R.I.P. - Banco del Mutuo Soccorso
4) L'EVOLUZIONE - Banco del Mutuo Soccorso
5) PRINCIPE DI GIORNO - Celeste
6) DOLCE ACQUA - Delirium
7) APPENA UN POCO - Premiata Forneria Marconi
8) EPILOGO (da suite "Ys") - Balleto di Bronzo
9) CORPI DI CRETA (da suíte "Mu") - Riccardo Cocciante
10) CROMA - Alphataurus
11) IL NEVARE - Biglietto per Inferno
12) LUGLIO, AGOSTO, SETTEMBRE (NERO) - Area
13) UN GIORNO, UN AMICO - Quella Vecchia Locanda
14) PROFUMO DI COLA BIANCA - Locanda delle Fate
15) COFFEE SONG - Acqua Fragile
16) IL MUSICISTA - Le Orme
17) UNA DOLCEZZA NUOVA - Le Orme
18) DELLA NATURA - Museo Rosenbach
19) LA TERRA DELLA VERITÀ - Saint Just
20) SPECCHIO - Jumbo


SUÍTES - TOP 12

1) TERRA IN BOCCA - I Giganti
2) SUITE PER IL SIG. K - Jumbo
3) ORO CALDO - Osanna
4) ANIMALE SENZA RESPIRO - Osanna
5) ZARATHUSTRA - Museo Rosenbach
6) IL GIARDINO DEL MAGO - Banco del Mutuo Soccorso
7) FRUTTI PER KAGUA - Capitolo Sei
8) FELONA E SORONA - Le Orme
9) STORIA MAI SCRITTA - Enzo Capuano
10) ARIA - Alan Sorrenti
11) MORETTO DA BRESCIA - Garybaldi
12) CONCERTO GROSSO No. 1 - New Trolls

E tanta coisa maravilhosa ficou de fora....

A fazer: TOP das capas, dos músicos, das músicas instrumentais, dos discos...

Saturday, September 24, 2011

O Quarto do Filho




Reza o segundo princípio do DOGMA 95 que "o som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa". Em outras palavras, a música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena. Em outras palavras ainda: fim da trilha-sonora. A não ser.

A não ser que seja incidental. Depois de assistir a Sociedade dos Poetas Mortos com meus alunos, toco-lhes trechos da trilha, pedindo que identifiquem a que cena cada trecho corresponde. Eles, que já assitiram ao filme, em pedaços, há muitos dias atrás, cumprem a tarefa com perfeição e entendem bem a distinção entre os dois tipos de trilha. Neal, Knox, Charles não ouviam música alguma quando seguiam para a caverna à noite, mas nós, espectadores, sim, ouvimos Jean Michel Jarre. Tampouco eles ouviam harpa e gaita de foles quando, na última e inesquecível cena, subiram nas carteira para desafiar a educação opressora... Entretanto, eles, os personagens, ouviam a música tocada in loco durante a apresentação teatral de Neal. Segundo o Dogma, apenas este último exemplo seria válido.

Em O Quarto do Filho, de Nanni Moretti (bom cineasta e ator quando consegue frear seu narcisismo), esses dois tipos de trilha aparecem numa mesma cena (ou quase). É ver o vídeo e comprovar. O persoangem ouve a extraordinária canção de Brian Eno ("By this River") tocada na loja de Cds... Mas não a ouve quando perambula, desolado (sim, seu filho já morreu) pelas ruas de Ancona. A menos, claro, que ela estivesse ressoando em sua cabeça... O que, ocorreu-me agora, não seria nada improvável... O que faria o Dogma com isso?




(Aliás, como diria Didi Mocó: caiu aqui... Durante madrugadas passadas com o Dante, me sinto exatamente como pai, mãe e filha na última cena deste filme. Isso dá um post. Mas este post não escreverei.)

Carrington



Das dezenas trilhas-sonoras do Michael Nyman que tenho, é possível, e mesmo provável, que minha preferida seja a do Carrington, pouco falada e nunca lembrada entre os nymaníacos. Mas, atenção, somente da faixa 10 em diante. Isso não quer dizer que eu desgoste das nove primeiras músicas: gosto, mas não são elas que me fazem entronizar Carrington como minha trilha preferida.

É quando os gentis acordes de "Partridge" começam a tocar (com sua maravilhosa, inda que sutil, mudança de tempo a 1'11''), que o negócio fica sério. Aliás, muito sério. Poucas vezes (A la Follie, talvez) Nyman foi tão pesado. Músicas como "Brenan", "The Infinite Complexity of Christmas" e "Something Rather Impulsive" são de um complexidade, de uma sensibilidade, de uma pungência dificilmente igualada em todo o seu repertório. Approach with care.


Para os fãs da maravilhosa "Floating the Honeymoon", uma dica: no filme ela é bem mais longa que os 2'48'' do disco. O que, por si só, já valeria o filme de Hampton. Aqui, compositor e diretor chegam a ser covardes: botar uma música dessas em uma cena em que aparece Veneza....


To be continued...

Tuesday, September 20, 2011

Saudades de Goa

Há um soneto de Sidônio Muralha, em Poemas de Abril, que termina com estes dois versos:

"a minha volta é só formalidade.
Voltar não voltarei. Sempre lá estive."

Não sei o que deu em mim que sou assaltado por saudades de Goa ultimamente. Saudades daquelas que doem, daí a ponho no pilão e soco, macero, faço dela cataplasma e ponho sobre a ferida. Revejo as fotos, folheio os livros (como os maravilhosos da Heta Pandit), penso textos. Mais que isso, reencontro Goa ali e aqui.


Há alguns meses conheci a capelinha de Nossa Senhora das Cabeças (post em breve) no Jardim Botânico, situado em uma escola que até recentemente era um orfanato. A escola é mantida pelas Irmãs Carmelitas Descalças.

Não digo nem a capelinha em si, maravilhosa e genuína construção colonial do início do século XVII (!!), a única capela com alpendre de nossa cidade, mas o prédio central, as casinhas das cercanias, o isolamento, tudo trazendo-me à mente e ao coração a ilha de Divar, no coração das Velhas Conquistas goesas...

Tanto que coloco duas fotos: uma do Jardim Botânico, outra de Goa, logo ali... Qual é qual?

E assim carrego Goa comigo. Quando voltar, mera formalidade, poderei dizer que voltar não voltei. Sempre cá estive.


Friday, September 16, 2011

Futebol em Goa

A Índia não é lá muito fã de futebol, preferindo o críquete a ele. Uma partida de críquete entre Índia e Paquistão é o que de maior rivalidade pode existir no mundo do esporte. Esqueçam Vasco X Flamengo, Barcelona X Real Madri, Celtic X Rangers, Partisan X Estrela Vermelha, Inter de Milão X Milan, Boca Juniors X River Plate, Bonsucesso X Bangu, pálidas sombras, ninharias, ossinhos de borboleta perto da paixão despertada quando se confrontam Índia e seu eterno rival no críquete.

Claro que há críquete em Goa, mas esta, que passou séculos de costas para a Índia, trai o sangue luso que já correu em si ao demonstrar paixão maior pelo futebol. Em nossas muitas jornadas pelas aldeias, quantas e quantas partidas, qualquer hora, qualquer dia.



Não existe um time chamado "Goa". Mas essas camisas, puramente fantasia, são lindas, não? Claro que trouxe uma. No mercado de Arpora.



Jogo em Talaulim. Aos pés e à sombra da fantasmagórica igreja de Santana.


Bate-bola durante o recreio em escola da aldeia de Cuncolim...


Ainda em Cuncolim. Vejam a forte presença do futebol no imaginário...

Thursday, September 15, 2011

Goesas Janelas

Um post da Potira em seu lindo blog motivou-me a revisitar fotos nesta madrugada e garimpar algumas janelas de Goa.

De quebra, segue o poema da Adélia.

Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
clarabóia na minha alma,
olho no meu coração.




































Wednesday, September 14, 2011

Carta ao Prefeito


Caro Sr. Prefeito,

hoje pela manhã, em passeio com meu filhinho, encontrei uma casa. Isso, uma casa! Duas, na verdade! Isso bem aqui no Ingá, bairro central da cidade. Tente o Sr. avaliar o meu choque. A Prefeitura põe em curso uma obra civilizatória de pôr abaixo todas as casas da cidade para no lugar delas levantar espigões de 45 andares, o Sr. e seus asseclas enchem as burras (e os cus) da grana copiosa que jorra dos empreiteiros, e duas casinhas como que riem às escâncaras em desafio inaceitável a tudo isso.

Sr. Prefeito, onde os olheiros que, quais bombeiros do Fahrenehit 451, descobrem as casas e as denunciam às construtoras? Cochilavam? Criam sua obra já finda? Depertai! É preciso derribar esses vestígios burgueses! Fazei como em Icaraí: não descanseis até que todas elas sejam reduzidas a escombros! Em seguida, parti para o novo ataque: pôr abaixo os prédios de até três andares para que estes também deem lugar às construções magnânimas da SOTER, da CYRELLA e outras empresas de bem.

Sr. Prefeito, minha denúncia está feita. Acredito que o Sr. não irá falhar.

Subscrevo-me.

Friday, September 09, 2011

São Cristóvão



Domingo, em frente à padaria com Dante, sou interpelado: "Você é São Cristóvão?", ao que replico: "Também". Claro, estava com a camisa, item querido da coleção à que junto agora esta segunda, réplica daquela vitoriosa campanha de 1926.

A irretocável conquista conta com duas vitórias sobre o Flamengo: 5 x 0 no primeiro turno, 5 x 1 no segundo turno. Não lembro isso para provocar, antes pelo contrário: qual time carioca é campeão com duas goleadas sobre o time da Gávea? O segredo daquela equipe, treinada por Luis Vinhaes, que dirigiria a Seleção na Copa do Mundo de 1934, consistia em, pura e simples, reforçar ao máximo os treinamentos físicos. Ou seja, e digo-o sem clubismo, imitar o Vasco, que introduzira este conceito no futebol carioca (brasileiro?).

Mas para além deste título, o Sáo Cri-Cri tem outra especialíssima particularidade: é o ÚNICO TIME DE FUTEBOL DO MUNDO que não tem uniforme reserva. Está nos estatutos da Federação Estadual do Rio de Janeiro que, quem enfrenta o São Cristóvão precisa mudar de camisa se costumar vestir-se de branco. Is it soft or do you want more?

Alegria encontrar o São Cristóvão em uma garagem no Caju, bem como encontrá-lo em um adesivo no Bar Rebouças, um pouco maior do que tenho em minha cozinha.

E assim, Caju, Jardim Botânico, Ingá: as pontas formadas de um triângulo a resistir ao rolo compressor do pensamento hegemônico.


Bateu! (Eh, trem bão!)

Quando eu acampava em Visconde de Mauá, na primeira metade dos anos 80, era comum encontrar-me, quase sempre à minha revelia, em uma rodinha onde circulava de mão em mão, e de boca em boca, um cigarrinho de cannabis. Quando chegava a minha vez, eu declinava, mas, para ser gentil, costumava ajudar na circulação daquilo que chamavam de "cachimbo da paz", fazendo com que este chegasse ao sujeito ao meu lado. Era um ritual sério e silencioso, dir-se-ia mesmo que religioso, sagrado, sacrossanto. Eu era o careta do grupo, pelo menos era assim que o pessoal, muito libertário e transgressor, me chamava. O silêncio só era interrompido quando alguém, de voz embargada, segurando ao máximo aquela fumaça santa na boca, gemia: "Bateu..!". Era rastilho de pólvora. Súbito ouvia-se outro "bateu" aqui, outro ali, outro acoli. O cigarrinho babado, chupado, beijado e mordido, fazia suas últimas órbitas, dentre aqueles jovens já devidamente... batidos.
Lembrei-me disso outro dia.
Quem gosta muito de música e a consome em excesso irá me entender: quanto tempo leva até que uma música, uma peça, um movimento, todo um CD, seja devidamente assimilado? Naturalmente a resposta dependerá de inúmeros fatores, como quanto tempo disponibilizamos para ele (não acontece de às vezes ouvirmos um CD e logo o deixarmos de lado, para só descobri-lo muito tempo depois, if ever?), sua complexidade e a experiência do ouvinte enquanto tal. Acontece de eu investir em um CD muitas vezes em vão, ao passo que com outros a assimilação, isto é, a compreensão e, consequentemente o gostar de verdade (gostar sem entender é mistificação, algo comum com os cinéfilos de Bergman), vem quando menos se espera.
Com o Big Big Train a epifania se deu no ônibus, depois de algumas, mas não muitas, audições, mais precisamente com a explosão dos metais aos 8'40'' da canção "Victorian Brickwork" do CD The Underfall Yard. A sensação de que já conhecia aquilo, de que sempre conheci aquilo, ao ouvir a tuba, o trombone, a corneta, a trompa. Nada sampleado, senhores, tudo carinhosamente analógico, acústico, artesanal, orquestral. Os metais, por sinal, marcam presença também em outras canções deste ótimo disco.
Segurei a respiração, mantive aquela notas musicais na cabeça e, no meio da ponte, exclamei de mim para mim com voz embargada: "Bateu!".
 

 

Em Santa Rosa, como em Roma

Quando se entra na Santa Maria Maggiore, em Roma, percebe-se imediatamente o monte de gente andando pra lá e pra cá de olhos cravados no chão. A igreja é linda e pode-se olhar para cima, para frente, em qualquer grau ou posição, com a certeza de conceder à vista um deleite. Mas parece que o ponto alto, com o perdão do paradoxo, está naqueles mosaicos do piso. Como em San Marco, em Veneza, pois, o segredo da visita à Santa Maria Maggiore consiste em andar de pescoço reclinado em 90 graus, com a atenção de quem procura lentes de contato numa plantação de couve.


Comigo e com Ana não foi diferente. Em Roma com os romanos ou, aqui, como os turistas de Roma. Deambulávamos pela nave quando, súbito, uma desconhecida toca Ana no braço e pergunta-lhe: Dove hai comprato questa scarpa? Era uma mulher inteiramente desconhecida que, sem sequer um Buon giorno, quer saber onde minha mulher tinha comprado os sapatos que calçava! Os sapatos mais interessantes que os mosaicos! Não, perdoem-me o sexismo, mas a mulher não poderia ter sido mais mulher. Ana e a desconhecida, de quem jamais saberemos nome, nacionalidade, estado civil, posição sexual favorita ou, ao menos, o número do sapato, são como que dois planetas vagando no espaço. Quando, por uma espantosa conjunção astrológica, se tocam, tudo que a mulher quer saber é... onde minha mulher tinha comprado seus sapatos. Mulheres e sapatos. Toda mulher uma Imelda Marcos, assumida ou enrustida.


Voltando à história, Bia, profundissimamente estupefata, gagueja, menos por seu italiano incipiente, um A Brasile, ao que nossa distinta faz um gesto com a cabeça e, pronto, os dois planetas tornam-se a separar, desta vez para sempre.


O episódio, claro, virou piada interna, item de léxico familiar. Por anos, a leve menção à sapato traz para nós aquela tépida manhã em Roma. Como em:


- Já tá pronta? Vem logo!

- Calma, tô calçando o sapato.

- Dove hai comprato questa scarpa?




Isso tudo me veio à mente ontem na Basílica de Santa Rosa. Quando trago Dante à fisioterapia, por vezes frequento a sessão, por outras, fico de fora lendo ou saio para passear. Até bem recente todas minhas andadas tinham sido para os lados de Icaraí (onde a clínica se situa), mas recentemente descobri qão perto estava de Santa Rosa. E Santa Rosa tem a Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora. Claro que eu já estive aqui, mesmo para assistir a um concerto neste órgão monumental, mas só ontem (a história da mão que nunca se molha no mesmo rio duas vezes) atentei para a beleza dos azulejos hidráulicos do piso. Mal eu transpusera a fachada, bem antes do transepto (fiz questão de não avançar muito), contabilizei essas quantas variedades...














E a igreja vazia, sem alma que perguntasse a origem de minhas sandálias...

Tuesday, September 06, 2011

Paráfrase de Bandeira




O Manuel, poeta que se dizia menor, tem um poema chamado "Minha Terra" que eu, poeta nenhum, ora parafraseio.

Primeiro vem o Manuel, Bandeira do Brasil. Depois venho eu.

Minha Terra

Saí menino de minha terra.
Passei trinta anos longe dela.
De vez em quando me diziam:
Sua terra está completamente mudada,
Tem avenidas, arranha-céus...
É hoje uma bonita cidade!

Meu coração ficava pequenino.

Revi afinal o meu Recife.
Está de facto completamente mudado.
Tem avenidas, aranha-céus.
É hoje uma cidade bonita.

Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!

Meu Bairro

Cheguei já bem adulto em meu bairro.
Passei vinte e nove anos longe dele.
Dele nunca me diziam nada.
Porque jamais imaginaram que eu moraria aqui.

Meu coração ficava pequenino.

Revejo todos os dias o meu Ingá.
Está de fato completamente mudado.
Derrubam as casas com azulejos, pinhas e cobogós
para erguer Pallazzo Ingá, Ingá Imperial, Baalbeck e Palácio Alhambra.
É hoje um bonito bairro.

Para a puta que pariu quem põe bonito o meu bairro!

Sunday, September 04, 2011

Enquanto sobrarem-me caraminguás

Não sou rico, jamais o serei, pois sou professor e não jogo em loterias. Não que eu repita esse blablablá de autocomiseração do magistério, mas rico rico como professor, impossível, pois tampouco desejo ser dono de escola. Mas não reclamo, riquíssimo em experiências que sou, as reais e as inventadas.
 
Contudo, voltando ao monetário: enquanto sobrarem-me caraminguás, comprarei CDs. Poucos prazeres como este, seja em lojas reais (as heroínas da resistências, a Halley, a Masque), seja em virtuais (a Rock Symphony, o Mercado Livre, a italiana BTF, a sueca Record Heaven e, principalmente, a Amazon).
 
O prazer da chegada dos pacotinhos. O prazer sensorial, a materialidade, o fetichismo: a audição começa aqui.
 
Ontem à noite chegaram-me quatro. Com pequeno atraso, mas who cares? A espera, se não exagerada, só aumenta o gozo. Com duplo sentido, por favor.
 
O que chegou? Coisinhas básicas: Horslips (1972), The Family Tree (1968), Shawn Phillips, Bröselmaschine.
 
Os itens, frete incluso, saem por volta de... 27 reais? Então tá, você recebe em casa um CD importado, com encarte recheado, por esse preço.
 
Aliás, e a propósito, acaba de sair pela Masque o Blue Mammoth. Preço? 20 reais. Vin-te re-ais! Se eu sentar no Bar Rebouças (adoro) no Jardim Botânico, ou no Temporal (amo) no Mercado de São Pedro, e tomar três Heinekens pago 21. Em menos de uma hora. E não levo nem os cascos.
 
E tem caboclo que defende download ilegal dizendo que CD é caro.