Saturday, March 27, 2021

Giro em Quintino


Respeitando os protocolos, outro dia dei um pulinho a Quintino, para ver se o mítico Bar do Souto, o Mosteiro Rila dos Botequins Cariocas (aqui), ainda existia. Eu precisava fazer isso. E o fiz com o coração muito apertado, já que só estive lá única vez, em março de 2014, ou seja, exatos sete anos. E tanto acontece em sete anos, Jacó que eu diga. O carro se aproximava, pois, e minhas mãos suadas, o medo de chegar ao endereço e não dar com Raquel, serrana bela, mas com moça de olhos remelentos, isto é, não encontrar o botequim de esplêndidas pinturas mas uma pastelaria. Ou uma loja de material de construção (o que se deu agora com o Café Bar Brasília) ou apenas um boteco anódino, de paredes muito brancas.

Bem, nem Raquel nem Lia. O botequim estava fechado, mas consegui informações preciosas com a nora do ex-dono. Este ex-dono teve infarte, mas passa bem. O botequim, agora a cargo do seu filho, abre esporadicamente. 

Mas, segundo ela, as pinturas estão todas lá. 

E estava eu em Quintino, aproveitei para pequeno giro. 

 








 













Monday, March 22, 2021

Livraria São José

A Livraria São José devia seu nome à sua localização: Rua São José, por sua vez assim chamada por causa da igrejona barroca da 1o de Março. Mas, devido à crise, havia se mudado. Para mim sempre foi um sebo e agora fechou de vez. Foi ali que comecei a minha roseana, comprando em abril de 1988, poucos dias antes de a Camila nascer, uma edição de Sagarana pela José Olympio. Ali voltei diversas vezes para comprar diversos livros de crítica sobre o Rosa e sua maravilhosa correspondência com Edoardo Bizzarri, seu tradutor italiano. Tudo usado. Como acontece com as fotografias, me arrependo, e muito, dos que não comprei, como a edição norte-americana do Grande Sertão.

Agora fechou de vez.

Não estou me dando muita importância não, mas já não sei que faço numa cidade que tem cada vez mais bancos, drogarias e igrejas neopentecostais, e menos livrarias e botequins antigos.

Este o poema que Drummond escreveu para o proprietário da São José. Saiu na segunda edição da Viola de Bolso.


A CARLOS RIBEIRO

Que desejo ao grande livreiro
meu amigo Carlos Ribeiro?
 
Que entre livros e amigos viva
uma existência sempre ativa;
 
e sua vida seja como
um delicado e nobre tomo
 
(quem ama assim o seu ofício
insculpe o melhor frontispício);
 
e não haja o menor desgosto
manchando a página de rosto;
 
e que tenha como prefácio
um verso de Pope ou de Horácio;
 
que no fim de cada capítulo
sorria sempre um novo título
 
(não protestado!) de esperança
em tudo o que o trabalho alcança;
 
da primeira à segunda parte,
tudo obedeça às regras da arte;
 
e que este livro continue
como a obra completa do Ruy,
 
por muitos e ditosos anos,
queira assim Deus em seus arcanos.
 
Que portanto o grande livreiro
meu amigo Carlos Ribeiro
 
na São José viva tranquilo
entre uma princeps do Camilo
 
e tratados de Auguste Comte,
enquanto fulge no horizonte
 
aquela estrela benfazeja
dos buquinistas. Assim seja. 

Thursday, March 18, 2021

Dante, aulas remotas, nós

Quando começou essa história de aulas remotas, pensei logo 'Não vou conseguir'. Entravam aí, claro, insegurança e contumaz desacerto com internet. Entrava aí minha preocupação com o Dante, eu tendo que estar com ele, ele atrás de mim, eu me lembrava do Robert Kelly dando entrevista para a BBC: entra a filha dançando, entra o bebê no andador, entra a mãe desesperada atrás, puxando filha filho andador e porta. Foi engraçado mas preferi ver a resposta a isso: se fosse mulher, ela iria sentar a criança no colo, dar de mamar se necessário e continuar a entrevista.

Nela me inspirei quando anuí: partiu, mas vai ser como der, como for possível, tenho filho autista em casa e, como já se disse, tão acertadamente, "não são os filhos que invadem o trabalho, foi o trabalho que invadiu a vida de filhos e família".

Quando o filho é autista, a parada complica, quem disser que é a mesma coisa leva sopapo. Virtual.

Dei um curso sobre Pink Floyd que ia das 7 às 7:50. Estive à frente de uma roda de conversa chamada "(Precisamos falar sobre) Autismo na Quarentena", que ia das 7:50 às 8:40. Éramos só nós dois. E tantas outras aulas e orientações. Minha tranquilidade é ouvir o ranger da rede, ao menos sei onde ele está e que está bem. Os alunos também ouvem o ranger e sabem onde está o Dante.

Num dia de roda de conversa, ele estava muito quieto, o que não é bom sinal. Quando terminei, vi que ele arrastara a poltrona para o meio da sala e nela se refestelara com seu tablet. Suspirei. Tá, Dante, você quer mais chocolate? 

Num dia de Pink Floyd, analisávamos e ouvíamos o The Wall enquanto da sala vinham barulhos preocupantes e depois um silêncio ensurdecedor. Terminada a aula, corri para lá apenas para encontrá-lo pelado na rede, as quatro cadeiras da mesa da sala na varanda. Assim que me viu, falou em sua língua tonal, como se me visse pela primeira vez: Papaaaaaiii!

Mas foi depois do último encontro das conversas sobre autismo que ele executou sua magnum opus. O padrão se repetiu: primeiros barulhos suspeitosos, depois o silêncio desejado por Hamlet. Quando cheguei na sala, a poltrona estava no centro, o sofá bloqueava a porta da frente e as quatro cadeiras, grandes, empilhadas na cozinha.

Dante estava sentado sobre a quarta cadeira, devidamente entronado, Sua Majestade, como na música do Trio Nagô. Estava quieto e feliz. Sorria. Quando instintivamente levei minha mão à cabeça, ele viu minha testa e, como sempre, pediu para beijá-la a seu modo:

 Bibiiiiii!

Ao que respondi:

Eu também te amo, meu filho.

 

Hoje nos acostumamos um pouco. Ele às vezes vem e se senta no meu colo, gosta de olhar os rostos na tela do computador, mas por pouco tempo. Outras vezes pede beijos,  shantalas, balões. E pede sempre que eu deixe a porta aberta, no que o respeito totalmente. 

 

PS: Publiquei este texto no final do ano passado, mas o reescrevi, aumentando-o. E a postagem mais bonita com a almofada linda que a Graça nos deu hoje

Monday, March 15, 2021

Como ela deve ter sido linda quando jovem!

                                                              Dona Tatá, Milho Verde

HÁ UM TRECHO muito bonito nas memórias de Nikos Kazantzakis quando ele lembra estar numa aldeia na Calábria sob forte chuva e sem quem o acolhesse. Lembra-se de seu avô cretense, que iria acolher qualquer desconhecido em situação semelhante e conclui que nas aldeias calabresas não havia avôs assim. Bem.

Bem, uma senhora o acolhe, com um lar, um fogo para secar suas roupas, um feijão delicioso, um banco para seu sono e, na manhã seguinte, leite quente. Não trocam palavras, exceto quando ele pega a carteira e ela recusa, agradecendo, "Desde que meu marido morreu, nunca dormi tão bem"

Acho tudo isso bonito, mas me chamou a atenção o trecho em que ele a examina, já de manhã, e conclui "Como ela deve ter sido linda quando jovem!", maldizendo o destino humano e sua inevitável deterioração.

Me lembrei foi de Carrière, Jean-Claude Carrière, roteirista de Buñuel e que escreveu um dos livros mais bonitos sobre a Índia: Índia : Um Olhar Amoroso. No verbete 'Mulheres' :

Uma forma de expressão nunca deixa de surpreender : os indianos, homens e mulheres, falam naturalmente da beleza das mulheres idosas. Podemos dizer que uma jovem é bonita, atraente, pretty, nice-looking. Raramente dizemos que ela é bela. A beleza só chega com a idade, com o cumprimento de uma vida. A beleza é uma qualidade que é merecida e adquirida. Não cai do céu nem é fundamentalmente perecível, como entre nós. 

Isso torna menos difícil a tarefa de envelhecer?

Em 1982 Jean-Claude Carrière e Peter Brook foram convidados a conhecer, em um centro de danças de Madras, a conhecida dançarina e coreógrafa Rukmini Devi. Enquanto a esperavam, Carrière perguntou a alguém como ela era. A resposta foi:

-- She's very beautiful.

Ela tinha então 81 anos.

Quando Rukmini Devi enfim apareceu, Jean quedou-se impressionado com sua beleza:

Vestida com uma roupa de algodão claro, com os longos cabelos brancos até a cintura, os olhos negros, ela não fazia nada para esconder sua idade. Não usava nenhuma maquiagem e ao andar se apoiava em uma bengala. Mas era como uma luz penetrando no lugar onde estávamos.
 
*********
A visão que faltou ao Kazantzakis.
 
Quanto ao Carrière, morreu há pouco mais de um mês. Com certeza passeia pela eternidade ao lado de Ganesha, o que era seu sonho.

Sunday, March 14, 2021

Um Soneto de Pete Townshend

Estou chegando à metade do primeiro romance de Pete Townshend, lançado em 2019, The Age of Anxiety, depois de Auden e Bernstein, of course. E olha que a pandemia não começara. Profético.

Estou chegando à metade e encontro um... soneto! Bem, escrito por Pete? Claro que sim, mas, na "economia do romance", como gostava de dizer um professor, escrito por Siobhan (em irlandês esse 'bh' se pronuncia /v/), então mulher do seu afilhado querido, Walter. 

Este afilhado tinha uma banda de rock que tocava num único pub. Faziam relativo sucesso, tanto que Walter recebeu proposta de vender seu catálogo e ter uma música usada num comercial de carro. Ele ficaria rico. E ficou. Sua mulher, porém, sempre desdenhou a banda e todo seu trabalho, achando que ele deveria usar seu talento para escrever poemas e não canções para vender carros. Ah, e poemas para ela.

Na noite do seu último show, que é quando ele recebe a proposta, ela sai de cena e vai para uma casa no campo, onde escreve o soneto. A estratégia era chamar sua atenção -- ela jogou alto e fracassou. Na mesma noite, ele se apaixona por uma amiga em comum, Floss, e abandona a carreira musical e a mulher.

Mas ela escreveu o soneto na esperança.

 

I hoped for Shelley, Byron in your pen
    I longed for you to rise to meet your star
    The songs you wrote moved drinks across the bar
Why would you waste fine words on drunken men?
And wasting once, go on to to waste again?
    No sonnet to Siobhan, how could you mar
    Our love with elegies to some fast car?
For money? What can those in love dare spend?
You've sold your talent; then your soul is sold.
    You've championed commerce -- why? So you'll be 'free`?
    I love you, and I'll always tightly hold
The hope that one day you might dream with me
    To Waterford! I'm gone! I'll take my heart.
I can't stand by and watch you lose your art.  
 
 

O narrador afirma que ela usou o esquema de rimas do soneto italiano, um erro, já que ele é formado por três quartetos e um dístico, para além de ser monostrófico. Informa também que ela pretendia lançar livro de sonetos (!), já que "they were becoming popular again".

Ah, a minha edição é autografada pelo Pete! Quem sabe não consigo também um autógrafo da Siobhan? =)