Thursday, April 30, 2020

Stairway to Heaven


Quando voltamos de viagem, Camila e eu fazemos sempre espécie de Óscar, com os destaques e é delicioso relembrar tudo, ver as coincidências, as discordâncias. Algumas categorias sempre se repetem, quais sejam, hotel, café da manhã, restaurante, coisa engraçada, personagem. Outras são como que criadas ad hoc, para atender especificidades do lugar. Assim, na volta da viagem da Tailândia, "templos" foi categoria, "mercados" para Peru e México, "vinícola" para África do Sul, "cachoeira", Minas.

Quando voltamos de Belém, criamos a categoria "sumaúma".

E foi difícil eleger a mais amada

Mãe da floresta, escada para o céu. Eterna 











Sarapó :: Cerveja Artesanal Amazônica


Peixe-elétrico para mim sempre foi o poraquê, mas em Novo Airão descobri que o elétrico da área atende pelo nome de Sarapó. Peixe poderoso e misterioso, com uma descarga que pode matar um cavalo.

Mas isso tudo eu descobri por causa da cerveja artesanal de Nova Airão que, tcharam, tem o nome do peixe.

Fomos muito bem recebidos na pequena fábrica, o dono todo ele cheio de ideias e planos, de modo que fica imperioso voltar. Pra conhecer Velho Airão, pra voltar a Anavilhanas, arquipélago infinito, pra sentar à margem do Rio Negro degustando Sarapós, que eletricidade também pode funciona na interação entre pessoas e entre pessoas e rios.

Notas de degustação? Uma cerveja bem-intencionada, mas que ainda precisa de acertos. Que com certeza virão.







Tuesday, April 28, 2020

Indaguei o nome da flor :: Andrequicé


Quando se está em Andrequicé, a gente como que acostuma ao rompimento das paredes que separam a ficção da vida, Manuelzão tão palpável, não só pela casa onde ele morou, hoje museu, não só por sua presença no Bar da Roda, não só por todos se dizerem primos e sobrinhos

Não só pela Fazenda Santa Catarina, onde Otacília esperava Riobaldo, que guerreava os hermógenes, que guerreava a si mesmo

É que de repente estou no referido bar e, do nada, cai um sujeito puxando prosa, prosa atrás de prosa, enfim dizendo 'Sabe aquela foto da grávida no livro da Maureen Bisilliat?', 'Ora, claro que sei, não estou aqui em Andrequicé?', e ele, Manoel Geraldo Nascimento, replica: 'Aquele bebê sou eu'.

Não é todo dia que acontece. O nome da flor é Maria Amélia Borges Nascimento. Viva. Segundo seu sobrinho Pedro Fonseca, morador das Pedras e ele mesmo autor de livro sobre Rosa e Manuelzão, está boa igual a coco.

Ah, Manuelzão também está no livro da Maureen, de 1969. Irreconhecível posto que imberbe.

Augusto Cigano também está. Falo dele depois.





Monday, April 27, 2020

Tygers of Pan Tang


Eu tinha todo o rascunho de uma resenha do Tygers of Pan Tang que perdi.

Enfim, o que tenho a dizer sobre este disco é o seguinte: vindo em um período de indefinição, indeciso entre o punk e o metal, faz disso a sua originalidade, sua força e grandeza. Em outras palavras, Tygers faz aqui um metal antes que ele se solidificasse (e se engessasse e se mumificasse) num gênero capaz de aloprar pré-adolescentes espinhudos de 12 anos, mas cuja suposta rebeldia passou a residir apenas na aparência. Na aparência de um diabinho ou caveirinha estampados numa camisa preta.

Neste primeiro disco tudo é espontâneo, visceral e fresco. O vocal definitivamente não é o que viria a ser metal. E a coincidência não é meramente cronológica, muito mais de um Paul Di 'Anno que um Bruce Dickinson.

Um punhado de ótimas músicas, com exceção da bobinha "Wild Catz", como que antecipando o futuro próximo da banda, já plenamente dentro da etiqueta 'metal' e, portanto, sem a espontaneidade daqui. Tive este segundo disco em vinil na época, quando eles vieram no Rock in Rio e tornaram-se queridinhos.

Outro ponto positivo deste é a temática pouco comum no metal: crítica social, loucura, eutanásia. Fechar o álbum com "Insanity" é quase o Sabbath fechando Sabotage com "The Writ"

Disse que tive o segundo em vinil. Este aqui eu tive foi numa fita cassete, cópia da cópia da cópia da cópia, que um Julio doido do São José não sei como conseguiu.

É disco para se ouvir assim: em fita cassete ou no máximo vinil.


A ferocidade da minha ânsia de protegê-los


No meio do conto "Fool to cry", de Lucia Berlin, como que um conto autônomo, lindo. Lindo de chorar.

Eu passo o dia em Coyocán. Na igreja, o padre estava batizando uns cinquenta bebês ao mesmo tempo. Eu me ajoelho no fundo da igreja, perto do Cristo mais ensanguentado, e assisto à cerimônia. Os pais e padrinhos estavam dispostos numa longa fila ao longo da nave, de frente uns para os outros. As mães seguravam os bebês, todos vestidos de branco. Bebês redondos, bebês magrinhos, bebês gorduchos, bebês carecas. O padre foi andando pelo meio da nave, seguido por dois coroinhas balançando incensários. O padre orava em latim. Molhando os dedos num cálice que ele segurava com a mão esquerda, fez o sinal da cruz na testa de cada bebê, batizando-os em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo. Os pais estavam sérios e rezavam de um jeito solene. Eu queria que o padre abençoasse também cada uma das mães, fizesse algum sinal, desse a elas algum tipo de proteção.


Em aldeias mexicanas, quando meus filhos eram bebês, índios às vezes faziam o sinal da cruz na testa deles. Pobrecito!, diziam. Que lástima uma criaturinha tão encantadora ter que suportar esta vida!


Mark, aos quatro anos de idade, numa escola maternal na Horatio Street, em Nova York. Ele estava brincando de casinha com algumas outras crianças. Abriu uma geladeira de brinquedo, botou leite num copo imaginário e o entregou a um amigo. O amigo jogou o copo imaginário no chão. A expressão de tristeza no rosto de Mark, a mesma que vi mais tarde no rosto de todos os meus filhos no decorrer da vida deles. Uma ferida causada por um acidente, um divórcio, um fracasso. A ferocidade da minha ânsia de protegê-los. A minha impotência.


Antes de sair da igreja, acendo uma vela ao pé da estátua de Nossa Senhora, Santa Maria. Pobrecita.


Descritivo até a última frase do primeiro parágrafo. Depois entra a Lucia, narradora, autora, mãe, eu, tudo.

"Fool to Cry" é o nome de uma música dos Stones, de 76. É provável que Lucia jogue com isso, para escrever um conto muito mais interessante, sorry, eu aqui misturando alhos com laranjas, nunca fui fã dos Stones.

Sunday, April 26, 2020

(Tão meu) Pai


Quando Camila vai para a live com uma amiga, interrompemos nosso Twin Peaks, que ela revê e eu vejo, e levo minha gim tônica para a varanda. O céu abriu e apesar de tanta iluminação, vejo estrelas. Conto 11. Duas brilham mais forte, mas sei que não é Vênus, que esta aparece cedo (por isso em Goiás chamam-na Papa-Ceia) e depois só reaparece de manhãzinha. Por isso a chamam Estrela da Manhã, a girafa de duas cabeças por quem Manuel Bandeira e eu já comemos terra e dissemos coisas de uma ternura tão simples.

Depois conto novamente: 18. É curioso: quando os olhos se acostumam à escuridão a gente vê mais. Não pretendo metáfora aqui. E nem era o gim.

Aí me lembrei de uma história do pai: 1984, nós dois no apartamento da Visconde aqui no Grajaú. Nós dois no apartamento vazio. Ele me conta que dois dias atrás um grande acidente afetara a fiação, coisa de batida de carros, poste caindo, mortes. Falta de luz geral, ele então vira um céu deslumbrante, talvez quase como os céus que meus olhos mastigavam em Mauá (aqui). Mas ele faz questão de dizer e redizer: foi bonito, mas preferia que não tivesse ocorrido, já que foi pelo acidente e tal.

Tão meu pai.

Depois vou para a janela da frente e perco a conta de quantas estrelas. Acho até Vênus estava ali.


Eu quero um homem que se despeça do pai com um beijo
Lucia Berlin 

A Capelinha de Manuelzão II

pintura de Mura


Escrevi aqui sobre a capelinha do Manuelzão, ou melhor, a capelinha que o vaqueiro Manuel Nardi construiu a pedido de sua mãe, Rosa Amélia Nardi:

Nós fomos num velório de um tal João Santos e quando voltamo, mãe sentiu mal aqui nessa altura de estrada, nessa chapada. Parou e sentou numa pedra para descansar. Foi aí que ela falou que quando morresse queria ser enterrada aqui. Mãe disse que o lugar era bonito para fazer uma capelinha e um cemitério. Fiz.

É da inauguração dessa capelinha, no distrito de Andrequicé, que Rosa trata nas 110 páginas de "Uma estória de amor", segunda novela do primeiro volume de Corpo de Baile. Bem, trata disso e de muito mais.

Atualmente a capelinha está toda catita, Capela da Silga / Sirga, bem inventariado como patrimônio cultural e histórico do município de Três Marias, mas já esteve que só ruína, só a estrutura de madeira de pé. Foi reconstruída nos anos de 2007 e 2008, com informações da comunidade e da descrição de Rosa. Manuelzão já se fora há dez anos.

Recebo da amiga Dallena algumas fotos:





Saturday, April 25, 2020

Montes Claros, MG, paraíso, pasto e aguada



No delicioso mercado de Montes Claros (aqui), um dos botecos tem um painel de montesclarenses ilustres. Muito justo. Estão lá Beto Guedes, Darcy Ribeiro, Zé Coco do Riachão e outros três que eu não conhecia e agradeço por poder conhecer.

Mas como assim não tem o Cyro dos Anjos? Montesclarense ilustre que, para além de sua pequena mas consistente obra ficcional, escreveu Explorações do Tempo, memórias onde escondeu Montes Claros sob o nome de Santana do Rio Verde, para não ter problemas com a família mas mesmo assim teve.

Montes Claros frequenta as páginas de Guimarães Rosa como a Pasárgada das muitas  prostitutas bonitas para a gente namorar. Basta lembrar que Doralda, a ex-prostituta hoje casada com Soropita de "Dão-Lalalão", veio de lá.

Montes Claros! Casas mesmo de luxo, já sabidas, os cabarés: um paraíso de Deus, o pasto e a aguada do boiadeiro.

Mas eu seria injusto se em postagem sobre a cidade não citasse também aquele que faltou no painel do botequim:

Diziam os antigos da terra que fazia gosto, verdadeiramente, ouvir missa cantada na Matriz, quando as coristas não haviam atingido a idade provecta em que as conheci e o Maestro Boanerges ainda não era perseguido pelas vozes que a certa altura da vida começaram a acompanhá-lo em casa, na rua, na igreja, por toda a parte, enfim.


As ditas vozes -- comentavam alguns -- nasciam das muitas voltas que durante cinquenta anos a branquinha dera no sótão do maestro. Para outros, seriam artes do Sujo.

Enfim, se é para falar desses Montes Claros: é de lá também um dos discos de músicas para crianças (e não apenas) mais bonitos, de 1979.