Monday, April 27, 2020

A ferocidade da minha ânsia de protegê-los


No meio do conto "Fool to cry", de Lucia Berlin, como que um conto autônomo, lindo. Lindo de chorar.

Eu passo o dia em Coyocán. Na igreja, o padre estava batizando uns cinquenta bebês ao mesmo tempo. Eu me ajoelho no fundo da igreja, perto do Cristo mais ensanguentado, e assisto à cerimônia. Os pais e padrinhos estavam dispostos numa longa fila ao longo da nave, de frente uns para os outros. As mães seguravam os bebês, todos vestidos de branco. Bebês redondos, bebês magrinhos, bebês gorduchos, bebês carecas. O padre foi andando pelo meio da nave, seguido por dois coroinhas balançando incensários. O padre orava em latim. Molhando os dedos num cálice que ele segurava com a mão esquerda, fez o sinal da cruz na testa de cada bebê, batizando-os em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo. Os pais estavam sérios e rezavam de um jeito solene. Eu queria que o padre abençoasse também cada uma das mães, fizesse algum sinal, desse a elas algum tipo de proteção.


Em aldeias mexicanas, quando meus filhos eram bebês, índios às vezes faziam o sinal da cruz na testa deles. Pobrecito!, diziam. Que lástima uma criaturinha tão encantadora ter que suportar esta vida!


Mark, aos quatro anos de idade, numa escola maternal na Horatio Street, em Nova York. Ele estava brincando de casinha com algumas outras crianças. Abriu uma geladeira de brinquedo, botou leite num copo imaginário e o entregou a um amigo. O amigo jogou o copo imaginário no chão. A expressão de tristeza no rosto de Mark, a mesma que vi mais tarde no rosto de todos os meus filhos no decorrer da vida deles. Uma ferida causada por um acidente, um divórcio, um fracasso. A ferocidade da minha ânsia de protegê-los. A minha impotência.


Antes de sair da igreja, acendo uma vela ao pé da estátua de Nossa Senhora, Santa Maria. Pobrecita.


Descritivo até a última frase do primeiro parágrafo. Depois entra a Lucia, narradora, autora, mãe, eu, tudo.

"Fool to Cry" é o nome de uma música dos Stones, de 76. É provável que Lucia jogue com isso, para escrever um conto muito mais interessante, sorry, eu aqui misturando alhos com laranjas, nunca fui fã dos Stones.

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