Thursday, March 29, 2018

A história que meu pai não contou



"A história que meu pai não contou", de Victor Giudice, cabe fácil numa seleção dos melhores contos da língua. Dez melhores. Enigmático, cruel, cortarzariano, mas sobretudo na linha de Dino Buzzati (aqui) .

São do Victor os melhores registros de São Cristóvão (aqui), onde morou :: o seu Urucuia, o seu Yoknapatawpha.

Trocando em miúdos: Sara Maria não me dava a mínima atenção ou, para ser mais exato, nem me enxergava. Todas as tardes, quando as aulas terminavam, eu assistia ao seu desaparecimento, engolida pelas alamedas do Campo de São Cristóvão daquela época: um imenso jardim francês, enfeitiçado por infinitos canteiros de dálias brancas e gérberas amarelas, em meio a uma guarnição de arbustos, aparados em forma de gansos, elefantes, cavalos. Um jardim de Montrouge não seria mais satisfatório. Entre os canteiros, os flamboyants completavam o cenário, as alamedas onde Sara representava sua indiferença. Estoicamente, na ingenuidade dos onze anos, eu me escondia entre as colunas em frente ao Cinema Fluminense, para deixar o coração esfacelar-se a cada passo da minha ideia fixa. As meias brancas, sublinhadas pelos sapatos de verniz, eram os últimos pontos a se perderem, quando a saia verde já se confundia com a vegetação, e os cabelos louros com o sol poente. A paixão solitária foi o motivo, mais solitário ainda, da minha hospedagem no Hotel da Morte.

Wednesday, March 28, 2018

Traffic de Mellotron


Foi Camila quem me aproximou do Traffic, que eu conhecia apenas perfunctoriamente, enquanto ela, bem pelo contrário, tinha o Steve Winwood na conta de muso-mor do seu panteão progressivo, ao lado do Carl Palmer. Houve mesmo junho em São Pedro d'Aldeia, em 2013, que teve The Low Spark of High-heeled Boys como trilha-sonora de sexta a domingo.

Entre tantas audições, reparo numa música com um lindo mellotron e daí vou direto à bíblia Planet Mellotron para descobrir que são pelo menos quatro as canções em que o Tron brilha: três do primeiro disco de 67 ("House for Everyone", "No Face no Name no Number" e "Coloured Rain") e outra do último, sete anos depois, "Dream Gerrard".

Em todas elas o mellotron é de enfartar. Em "Dream Gerrard" o suingue é mais traffic que nunca, embora fosse já o Schwanengesang da banda.
PS: Com esta postagem inaugura-se oficialmente a 'tag' mellotron!

Sunday, March 25, 2018

Saliva barro gravetos



de saliva barro gravetos
faz-se a casa
equilíbrio instável
sobre o concreto do mundo
de saliva gravetos barro
faz-se o amor
sempre em desequilíbrio
não menos amor
os gravetos trazidos no bico incansável
o barro plasmado com paciência
a saliva dando liga
pingando
sobre o sexo


ps :: a ilustração é bordado da sophia sickermann

Saturday, March 24, 2018

Crônicas Juiz-de-Foranas VI ::: A Rua Halfeld


Logo na segunda página do seu Baú de Ossos, primeiro volume de sua imensa memorialística, Pedro Nava trata da principal rua de sua cidade natal, a vida imitando a vida na distinção que ele faz entre as margens direita e esquerda.

Halfed, como sabemos, foi o avô que ele não teve: o homem de quem sua intratável avó enviuvou. Antes, por supuesto, de casar com aquele que seria o seu avô.

A Rua Halfeld desce como um rio, do morro do Imperador, e vai desaguar na Praça da Estação. Entre sua margem direita e o Alto dos Passos estão a Câmara; o Fórum; a Academia de Comércio, com seus padres; o Stella Matutina, com suas freiras; a Matriz, com suas irmandades; a Santa Casa da Misericórdia, com seus provedores; a Cadeia, com seus presos (testemunhas de Deus -- contraste das virtudes do Justo) -- toda uma estrutura social bem pensante e cafardenta que, se pudesse amordaçar a vida e suprimir o sexo, não ficaria satisfeita e trataria ainda, como na frase de Rui Barbosa, de forrar de lã o espaço e caiar a natureza de ocre. (...)

Já a margem esquerda da Rua Halfeld marcava o começo de uma cidade mais alegre, mais livre, mais despreocupada e revolucionária. (...)




Friday, March 23, 2018

Assistir a um jogo do Tupi



Um dos sonhos da minha vida (sente o nível) era assistir a um jogo do Tupi. Mas lá em Juiz de Fora, porque há muitos muitos anos eu já tinha assistido a um América X Tupi no estádio da Vila Isabel quando havia estádio em Vila Isabel. 

Enfim realizei: um Tupi X Tombense pelas quartas-de-final do campeonato mineiro. O Galo Carijó vinha de uma goleada tedesca na rodada anterior: 7 X 1 sobre o Democratas-GV e como dia de muito é véspera de pouco, já este jogo não saiu do zero a zero.

Mas teve cerveja artesanal (Antuérpia) já dentro do estádio, teve ambulantes vendendo pele de porco que o mineiro não passa sem o seu porquinho e teve, claro, o indefectível espírito mineiro nos comentários durante todo o jogo.

Eu disse zero a zero? Vamos aos pênaltis. O Tupi não perdeu um e meteu 4 a 2. A explosão de alegria, a galera que nem pinto (ou galo) no lixo.

E dá-lhe dá-lhe dá-lhe ô, Tupi do meu coração!


  





No botequim encontro a torcida do Tombense!





Thursday, March 22, 2018

Di Cavalcanti em Juiz de Fora : Primeiro Mural Modernista


 Quem passa pelo local hoje não diz que é uma praça, muito menos uma Praça da República. Tanto que tem morador que desconhece (não sei se conhecerá por outro nome). De qualquer modo, se ali foi colocado o Marco do Centenário da cidade, em 1951, é razoável crer que o local tinha à época prestígio hoje perdido.

O triste é que no marco, projetado por Arthur Arcuri, há painel de Di Cavalcanti : o primeiro mural modernista em mosaico instalado em praça pública e o primeiro concretista do Brasil.

Tombado pelo Patrimônio em 2001, encontra-se bem deteriorado.








Tuesday, March 20, 2018

Palácio do Pavão :: Os Azulejos


 Ao fazer a postagem sobre o fantástico painel azulejar em Juiz de Fora (aqui), mencionei o da varanda dos fundos do Palácio do Pavão, na Tijuca / Rio Comprido, provavelmente os dois mais bonitos com que já atopei por aí (Turquia, Granada e Marrocos incluídos? Não). Pus o link para a postagem, só que lá não havia os benditos azulejos, apenas os do alpendre, lindos também.

Palácio do Pavão, lembremos, citado nominalmente por Pedro Nava em Balão Cativo (aqui), pois ali morava a menina esquiva e orgulhosa, deusa centopéica e miriapódica, que encantou e bouleversou Pedrinho. E isso é ainda mais valioso que todo azulejo.




Aqui os do alpendre :


Monday, March 19, 2018

Tesouro Azulejar em Juiz de Fora (Ou tem Esopo em Juiz de Fora)


No meu raso entendimento (mas grande paixão), um dos painéis azulejares mais bonitos do Brasil, os deste palacete de Juiz de Fora. Antiga moradia de um antigo proprietário da Fazenda São Matheus, a casa foi cedida ao exército e é hoje sede do círculo militar. Até onde apurei, não tem um nome especial.

Felizmente é tombado pela prefeitura desde 2000.

Toda a fachada é linda, a escadaria de granito, o corrimão de ferro, os azulejos hidráulicos do piso. Mas a palma mesmo vai para o painel que retrata a fábula da raposa e as uvas. Consultando o amigo Frascari (aqui), ele esclarece que são belgas (ah, isso acertei!), da Fábrica Gigliot, Hemixen les Anvers. Tão bonitos assim só mesmo os do fundo da Casa do Pavão, na Tijuca (aqui).













Relembrando o Palácio do Pavão, na Tijuca :


Sunday, March 18, 2018

Um Mosaico de Mucci para Juiz de Fora


Fui a Juiz de Fora para ver Portinari, cavucar alguma coisa do Nava e assistir à partida do Tupi contra o Tombense. Dei conta de tudo mas a viagem não estaria completa não houvesse as surpresas, no caso, um lindo e monumental mosaico de pastilhas de Alfredo Mucci.

Mucci é autor de um dos mais belos mosaicos do Rio de Janeiro, localizado em Copacabana na entrada de um prédio da Xavier da Silveira (de que falei aqui).

Encontrá-lo no hall de entrada do antigo Banco Mineiro da Produção já pagou toda a viagem.






Friday, March 16, 2018

Para um Homem Comum



Sou um grande entusiasta de música erudita: compro, prestigio, ia a concertos quando havia no Rio de Janeiro.

Já não sou tão fã assim da junção rock progressivo / música erudita. Aliás, sou fã, sim, sou entusiasta de todas as experimentações, só acho que a maioria gorou e envelheceu mal.

Emerson, Lake & Palmer sempre fizeram isso, chegaram  a criticar o Keith por se apropriar demais de música clássica. E quem criticou o viu ao vivo?

Anyway. Lá pro fim dos anos áureos (1977) fizeram a "Fanfare for the Common Man", do compositor norte-americano Aaron Copland, de quem, by the way, já haviam reescrito 'Hoedown', com a qual abriam concertos.

"Fanfare" é mais do que um cover. Porque é simplesmente MUITO melhor que a obra do Copland. A versão 'single' dos primeiros três minutos fez sucesso na Inglaterra. Mas é depois disso que a quebradeira começa. Este vídeo é fantástico, emblemático. Dos melhores prog ever.

Saudades eternas do Keith e do Greg



Tuesday, March 13, 2018

Sou filha de uma deusa


Conheci Martha através de um disco em que ela toca Rachmaninoff e Ravel com o Nelson Freire. Depois assisti aos dois no documentário sobre Nelson, fantásticas as conversas, ele mineiro tímido como Drummond. Meu conhecimento dela limita-se a isso e ao youtube. Só pra dizer que nunca a vi ao vivo, sonho acalentado, está na lista com o Nyman e o Mertens. (Philip Glass, Paul, os progressivos italianos e o Van der Graaf já tiquei).

Martha tem três filhas, uma de cada casamento. Este documentário é da caçula. Linda a cena do trem, ela acordando, seus muxoxos com o empresário (a gente sabendo que ele responderia 'You are my life'). Também as deusas ficam nervosas, deprimidas e às vezes já não veem sentido nas rotinas.

Para todos os efeitos, tocando como nunca e, como as indianas, mais bonita, posto que a beleza cresce com o cumprimento de uma vida (aqui)

New Trolls, Osanna, RDM. E Bacalov


Como assim Bacalov se foi, no final do ano passado, e ninguém falou nada? Bastante conhecido por suas trilhas-sonoras, tanto as de faroeste espaguete quanto a de coisas como O Carteiro e o Poeta (1995), este argentino radicado na Itália interessa de perto a este blog por sua participação no rock progressivo italiano, qual seja: em 1971, o Concerto Grosso com o New Trolls, no ano seguinte, Preludio Tema Variazioni e Canzona, com o Osanna, e em 1973, Contaminazione com Il Rovescio della Medaglia. Não é pouco.

Sua participação nestes álbuns vai ao encontro de certas aspirações de vanguarda de não apenas fazer 'música de aventura', aqui unindo o erudito ao popular, como de trabalhar com traços próprios da música daquele país, no caso, o barroco.

Se parte dessa produção hoje pode soar datada e mesmo por demais melosa (crítica não raro imputada ao RPI), o esforço é genuíno e os resultados, nove fora, ainda emocionam. Aliás, nada aqui fica atrás de outras experimentações progressivo / erudito, ELP incluído.







Saturday, March 10, 2018

Village Music of Yugoslavia


A Nonesuch, gravadora maravilhosa que tem em seu catálogo artistas como o Quarteto Kronos, lançou em 1995 um Village Music of Yugoslavia, em realidade gravações de 1968 de danças e canções da Croácia, Macedônia e Bósina e Herzegovina.

Sabemos todos que quando o disco foi lançado aquele país de nações eslavas encontrava-se em estilhaços. Há mesmo no encarte um pequeno e emocionante texto de Martin Koening, o sujeito que fizera as gravações há quase trinta anos, lamentando o fim de todo um mundo musical. Não acho que tenha sido ruim que Croácia, Sérvia, Montenegro etc. tenham querido existir enquanto nações independentes. Sei que foi de fato terrível a maneira como isso se deu.

Meu CD estava perdido. Perdido em casa. Reencontrá-lo e poder reouvir uma canção em especial -- a croata "Sinoć mi je lane moje dolazio Mile", que se me colara à alma -- foi um dos pontos altos da semana.

Ontem à noite, meu cervo Mile veio
me trouxe, meu cervo, três lindas caixinhas
Na primeira, meu cervo, tem chocolate doce
Na segunda, meu cervo, creme para o rosto
Na terceira, meu cervo, três beijinhos


Friday, March 09, 2018

Inxeba -- The Wound



Brincando, direi apenas que senti falta de mais clique (aqui). Afinal, é falado em xhosa ou o quê?

A sério, direi que Inxeba - The Wound (África do Sul, 2017) é um muito bom filme. Os protestos na África do Sul e a consequente proibição em alguns cinemas reforçam a sua importância e, espera-se, atrairão ainda mais atenção. A pseudoargumentação de que a cultura xhosa está mal representada é risível por pelo menos dois fatores: 1) artefatos culturais não têm a obrigação de 'representar' o mundo qual documentários, e como se mesmo estes fossem inteiramente desprovidos de qualquer ideologia. Assim, criticar uma novela da Globo por não 'representar' corretamente o autismo é tão válida quanto criticar Dostoievski por não ter caracterizado com precisão científica o comportamento compulsivo de um jogador compulsivo no romance do mesmo nome; 2) no fundo, esta argumentação deseja esconder, por óbvio, o preconceito contra o amor e o sexo entre indivíduos do mesmo gênero. Homofobia. Algo como dizer que não há homossexuais na Chechênia