Dividimos é gentileza dizer
o patife espaçoso
deita-se na perpendicular
para cima e para baixo
e eu que me vire
e eu que me role
para encontrar um pedaço de colchão.
No silêncio das madrugadas eu o espreito:
o meu pequeno guelfo florentino
um besourinho branco envolto em halo
com suas guelras levemente arfantes
cálido planetinha de luz própria
a aquecer-me.
Pedro Nava tinha quase 65 anos quando deu início à escrita de suas monumentais (em todos os sentidos) Memórias. Ele já escrevia, é verdade, participara ao seu modo do Modernismo em Minas, era poeta bissexto, mas foi preciso que sua mãe morresse para que ele arregaçasse as mangas e se dedicasse à penosa tarefa de rememorar, lançando Baú de Ossos em 1972. (Ei, 40 anos do lançamento, onde as comemorações neste país desmiolado?)
No quinto volume das memórias, o Galo-das-Trevas (todos os títulos são fuedas), o narrador em primeira pessoa sai de cena, dando lugar ao Egon, um primo. À época que li, fiquei completamente atordoado com esse duplo e, hoje, mesmo sabendo que o Egon é o próprio Nava (EGO + N, de Nava) o atordoamento não é muito menor, principalmente quando depois surge o Comendador, duplo do duplo, a quem já busquei aqui.
Mas por que isso tudo? Porque, tendo chegado a minha caixinha com as sinfonias completas de Egon Wellesz, fiquei estupefato ao saber que o compositor só começou a compor a primeira de suas 9 sinfonias (9 e mais a Sinfonia Epílogo, talvez tentativa, baldada, de fugir à maldição da Nona), à beira dos... 60 anos.
E como não fica bem em um post de blog falar só de dois Egons, é muito bom que as capas dos CDs tragam pinturas de um terceiro Egon, o Egon Schiele, pintor que me cativou em Viena. Este, claro, não esperou os 60 para começar a pintar. O expressionista austríaco dos amantes torturados morreu 32 anos antes disso.
Escrevi aqui sobre a alegria de poder comprar single malts mesmo sem viajar e aqui sobre um dos últimos whiskies de Islay que faltava eu provar. Bem, este post então é feliz duplamente, de vez que agrega duas das felicidades anteriores: trata do último single malt de Islay que me faltava provar, o Bruichladdich (Laddie para os íntimos) e, melhor, comprado aqui pela internet em site brasileiro.
O site Single Malt Brasil é fruto do esforço de Alexandre Campos, brasileiro radicado em Londres e, adivinhem, apaixonado por single malts. Conheci-o nos estertores do Orkut e logo chamaram-me a atenção seu interesse e gentileza, ao contrário de tantos "donos de comunidade" que se enchiam de fumos.
Os fumos que atraem Alexandre, como a mim, são outros: são os whiskies de Islay. Não por acaso, apenas após poucos meses de um contato virtual, ele me trouxe uma garrafa desta maravilha que é o Ardbeg. Migramos para o face, nosso contato continuou, e acompanhei a gênese do seu sonho de montar um site dedicado exclusivamente (ou quase!) ao whiskies single malts.
O site está pronto, lindo, e minha primeira compra foi pra lá de satisfatória: preços bons e serviço impecável. Em apenas dois dias, as ondas da minha Laddie (íntimo já) chegavam à minha porta.
Depois do boom do vinho, estamos em meio ao boom das cervejas especiais no Brasil. É possível que esse interesse se espraie também para o whisky e os conterrâneos percebam que o mundo dos destialdos da cevada vai além, muito além, dos Red Labels (para não falar dos Teachers).
Bem, e o Bruichladdich (repeat after me, after 3 drinks!)? Um ótimo malte, mas ao menos esta expressão, o Waves, longe de ser um típico Islay, no que tem de suave, sem a agressividade de um Laphroaig ou Ardbeg.
Bruichladdich já foi mesmo criticado por colocar no mercado tantas expressões, tantos whiskies com "finais" diferentes: com turfa, sem turfa, média turfa, super turfa, orgânico, Bourbon, tripla destilação, quádrupla destilação & so on... A galera de lá se defende: "Ora, você não precisa ter 22 destilarias diferentes...".
Se isso contribuir para aumentar a complexidade de sabores de Islay, sem apelação, podem contar com meu apoio. O site do Alexandre também.
o visgo das saúvas esmagadas.
cheiro das tamarindeiras no cio.
a dor desesperada das cigarras.
o esporte de tocar as campainhas.
rolimã arranhando a sexta-feira.
pés ralados em futebol de rua.
desejos saciados em surdina.
sonhando graças com a vizinha nua.
cozido à camisa mandando à merda.
todos os flamenguistas da família.
me deixem em paz. vão tomar no cu.
um menino na aldeia Grajaú.
o que foi minha infãncia permanece.
Então talvez esteja mesmo velho:
volto à caixa de cartas manuscritas
o meu baú de ossos insepultos
como se eu estivesse em transe, em busca
de... não sei. Só sei que a elas volto: espelhos
baços, de folhas gastas carcomidas
Em meio a envelopes carimbos selos
tua caligrafia às demais ofusca.
Sardônica, tu logo me dirás
que eu, que sempre desprezei horóscopos,
cumpro meu signo, ao andar para trás.
Te respondo que não, que não há volta.
Nem poderia andar pela mesma estrada
se as velhas cartas leio como novas
Eu me lembro dos meus anos de São José através das beldades por quem eu era, platonicamente, apaixonado. Dá certinho: em 81 foi a Simone, em 82 a Andrea Levy, em 83, a K., e por aí vai.
Minha paixão pela K. foi tão intensa quanto impossível: eu era o rockeiro rebelde supertímido e ela, A burguesa lindona tijucana até a raiz dos louríssimos cabelos. Até o uniforme caía-lhe espetacularmente bem: a calça jeans marrom mal dava conta de tantas coxas e a camisa de tergal cismava em ter os botões de cima desabotoados. A K. era a definição de mulherão aos quinze anos.
Eu amava a K. como um garoto poeta que não escrevia podia amar e que ouvia música o dia inteiro (de Plasmatics a Pink Floyd, de Venom a Tangerine Dream).
Claro que eu tinha olhos para decotes e os jeans so tight, mas meu amor era puro, a ponto de eu chamá-la de Ocean Gypsy. Ao descobrir-lhe o endereço, enviei-lhe a tradução da música "Still... you turn me on", do Emerson, Lake & Palmer. Para meu estupor, já no dia seguinte ela, na hora do recreio, copiou alguns dos versos no quadro!!!!
Pensei: posso morrer agora. Mas a esta emoção sobrevivo já 29 anos e espero que outros tantos venham por aí.
Não sei se sabem, mas o "turn me on" da música é o mesmo "you turn me on" sussurrado por Paul em "A day in the life". Não há nada de platônico aqui, é excitação, tesão mesmo. À época, claro, eu não sabia disso.
E.... sabem que o Greg Lake anda escrevendo um livro? Na verdade, três. Num deles ele contará histórias que andou recolhendo pelos shows. Uma delas envolve esta música. Certa vez, nos EUA, um homem humilde, porteiro por profissão, fez questão de conhecê-lo. Disse que sua mulher amava esta música. Sua mulher, entretanto, morrera há pouco, atropelada por um motorista bêbado. Ele foi ao julgamento e viu o sujeito, recalcitrante, ser absolvido, tendo apenas que pagar uma pequena quantia. No dia seguinte, entrou no carro disposto a, simplesmente, matar o cara. Entrou no carro e saiu, revólver no banco do carona. Ao ligar o rádio, que música está tocando? Sim, "Still... you turn me on". Life bigger than fiction. E ele dá meia volta.
Não é chegar, apontar a câmera e zás. Aquela foto célebre do Pixinguinha na cadeira de balanço não foi tirada em um dia. Walter Firmo, perito em montar e manipular os fotografados, levou tempo para conquistar a confiança do chorão. E, ai de mim!, eu que não tenho tanto tempo assim....
Pedi a um amigo fotógrafo profissional que examinasse meus álbuns de fotos de botequins do facebook. Ele teceu observações muito pertinentes, revelando sua filiação estético-ideológica à escola de Ripper e Walter Firmo. Ele ressentiu-se sobretudo da falta do elemento humano em minhas fotos ou, em suas palavras, "dos habituês (...) humanizando e interagindo com o lugar".
Concordo. Não é muito fácil fotografar botequins, os donos e os fregueses muitas vezes desconfiam, pensam que sou da Vilgilância Sanitária ou da Polícia Federal ou da DAS. Para piorar, adoro os elementos arquitetônicos / decorativos de um botequim tradicional, como azulejos, cobogós, pisos, frisos. Mas interesso-me também pelos seres que os habitam, muitos de uma fidelidade ao boteco só comparável à que um homem tem por seu time de futebol.
E, a partir da observação do amigo, passei e me interessar ainda mais. E, na medida do possível, registrar.
Com a remasterização do disco homonimo do Campo di Marte em 2006, ganhou-se menos em melhoria sonora, óbvio nesses casos, que na reparação de um erro histórico que já durava 33 anos: enfim, pode-se ouvir o disco na sequência que Enrico Rosa o concebera.
Explico: como tantos do progressivo italiano dos anos 70, o álbum do Campo di Marte (1973) é conceitual. Prentendia-se nele falar dos horrores da guerra, para o que o próprio nome da banda e a estupenda ilustração da capa retratando mercenários turcos já colaboravam. Enrico Rosa concebeu um trovador a contar / cantar uma história quando a guerra o interrompia. Para tal, pensou em algo tão simples quanto eficaz: o trovador seria retratado por meio de violão, flautas, harmonias vocais, ao passo que a guerra viria vestida em guitarras elétricas e trompas.
A faixa inicial do disco, portanto, teria que ser a do trovador, uma das introduções mais bonitas de toda a história do prog italiano, na qual estão os elementos citados e ainda, como se não bastasse, mellotron. A casa discográfica, no entanto, achou que seria mais atraente começar o disco com guitarra elétrica e assim, numa medida arbitrária e desrespeitosa, inverteu os lados (!!!), empurrando o que seria a introdução para o lato 2. Estragos monumentais de gravadoras no prog italiano assim, só mesmo o que já acontecera com o Alluminogeni e o que aconteceria ainda com o Celeste.
Ora, se em qualquer disco a ordem das músicas é importante, o que dizer de um álbum conceitual. Direi mesmo que eu nunca dera ao disco o valor merecido por causa do estrago mencionado. Com a reparação, temos uma introdução lindíssima, a ser ouvida de joelhos nesta manhã crocante de agosto.
PS: A remasterização a que aludo não foi a primeira do disco em CD. Ele já saíra em CD pela Vinyl Magic com o mesmo erro abusrdo da bolacha de 73.
Quando descobri o rock progressivo italiano eu não podia comprar os discos porque estes eram escassos e, por isso, vendidos pelo preço de trufas do Piemonte. Algumas pouquíssimas lojas os vendiam e eu, já um colecionador voraz, pouco podia fazer senão babar namorando (às vezes bolinando) as capas. Oh inacessíveis praias!...
Eram tempos pré-Internet e a única maneira de se chegar àquela música era pedir encarecidamente ao dono de uma fita, já cópia da cópia da cópia, que nos fizesse uma cópia. Imaginem a pureza de som naquelas TDKs e BASFs Cromo.
Assim conheci Museo, Quella Vecchia Locanda, Jumbo, Semiramis, Osanna. Paixão desta e de vidas por vir.
Mas cheguei, sim, a ter alguns vinis. Em Chicago, desencavei na Wax Trax, uma loja de segunda mão, o Mass-Media Stars, do Acqua Fragile. Paguei 2 dólares no dia 9 de setembro de 1986.
Acqua Fragile, quinteto de Parma, é uma banda de rock progressivo italiana que não faz rock progressivo italiano. Seu estilo, bastante influenciado por Yes e Genesis iniciais, tem um quê ainda de Gentle Giant e CSN&Y que o distancia de bandas como PFM ou Banco. Ademais, em seus dois álbuns (73 e 74), cantam em inglês.
Ora, apesar de renegarem a língua materna e apesar de não fazerem rock progressivo sinfônico suntuoso, deixaram um leagado de 13 ótimas canções. Eu achava a voz do Bernardo Lanzetti spitting image da do Peter Gabriel, mas hoje nem acho tanto. O Lanzetti, vocês sabem, depois foi para o Premiata, onde imprimiu seu selo inconfundível no também memorável Chocolate Kings.
Destaco as seguintes músicas: "Morning Comes", "Comic Strips", "Song from a Picture", "Three Hands Man", "Bar Gazing", "Opening Act" e "Coffee Song" (linda, linda) e há nesta seleção um equilíbrio entre as canções mais ligeiras, amiúde com ótimas harmonias vocais, e as mais melancólicas.
PS: Comentem o que quiserem, cada comentário é uma honra para este escriba, mas evitemos aqui obviedades acacianas como: "Ah, sim, são legaizinhos, sim, mas estão longe dos clássicos do progressivo italiano pláplépló..."
Penicos são já objetos de museu. Desça ao primeiro ponto de ônibus e pergunte quem sabe o que é isso, dirão que deve ser algo ligado ao mensalão ou sobrenome de algum BBB.
Eu mesmo, já nos 44 do primeiro? segundo? tempo só vi penico de verdade em uma ocasião: na casa da minha vó, que o tinha debaixo da cama. Acho mesmo que me lembro de vê-la agachada e envergonhada (até onde velhos se envergonham) usando-o, mas talvez seja invenção da memória. E por anos pensei que o Menino Maluquinho tinha um na cabeça, mas descobri hoje que é uma panela.
A bisavó do João Ricardo Lopes, meu poeta português preferido, dentre vivos mortos e por nascer, sabia usá-lo. Muito bem. E faço minhas as palavras finais do poeta.
COISAS DE FAMÍLIA
minha bisavó materna, proibida de beber, roubava vinho num penico nos fundos da casa. as netas e filhas deploraram-lhe o costume num furor de repugnância. vencidas pela teimosia, ameaçaram em vão com o vexame público. rezaram então à providência por um pingo de lucidez depois esconderam-lhe a chave da adega e o penico. mas a anciã continuou até ao último dia da sua existência a preferir a insubordinação às leis do bom senso (aliás, a todas as leis). comia ovos crus e pedia esmola à puridade pelas ruelas da aldeia não acreditava no diabo e dizia impropérios diante dos padres. contam que morreu velha e louca, sem tristeza, com o saco de pedir repleto de moedas de centavo. ia a caminho de uma taberna, onde costumava comer amendoins e jogar à sueca com os homens. uma vadia desavergonhada, contam por isso te saúdo, velha louca insubmissa. a natureza guardou-me na vida para que te fizesse justiça e te imitasse em quase tudo
Antes de se tornar Madame Sarkozy (2008-2012), Carla Bruni foi uma singer-songwriter talentosa, tendo lançado três álbuns. O primeiro, Quelqu'un m'a dit (2002), conheci-o mesmo em Paris, tão logo foi lançado. Deliberadamente low-profile, o disco exibe canções bem arranjadas e brunitas, pelas quais a moça desfila sua voz absurdamente deliciosa (falo da voz!). Gosto muito.
O álbum seguinte representa uma guinada, ao ser todo ele cantado em inglês e não ter única canção de sua autoria. In fact, o disco é uma coletânea de poemas musicados. A seleção dos poemas e dos poetas é de peso: Yeats, Emily Dickinson, Walter De La Mare, Dorothy Parker, Christina Rossetti e Auden. É disco que não desce tão fácil quanto o primeiro e muitos reclamarão do sotaque da belle du jour. Mas haverá quem encontre ainda mais delícias na voz, lembram-se da quase-menina-ainda Catherine Deneuve falando inglês no Repulsa ao Sexo (1965), de Polanski?
Minha música preferida deste é "At Last the Secret is Out", belo poema do grande W.H. Auden. O vídeo pega a música no meio mas, para compensar, estende um pouco o final. E vejam como o Sarkozy foi um cara da sorte, Hélas!
At Last the Secret is Out (W.H. Auden)
At last the secret is out,
as it always must come in the end,
the delicius story is ripe to tell
to tell to the intimate friend;
over the tea-cups and into the square
the tongues has its desire;
still waters run deep, my dear,
there's never smoke without fire.
Behind the corpse in the reservoir,
behind the ghost on the links,
behind the lady who dances
and the man who madly drinks,
under the look of fatigue
the attack of migraine and the sigh
there is always another story,
there is more than meets the eye.
For the clear voice suddently singing,
high up in the convent wall,
the scent of the elder bushes,
the sporting prints in the hall,
the croquet matches in summer,
the handshake, the cough, the kiss,
there is always a wicked secret,
a private reason for this.
Para comemorar os 114 anos de fundação do C.R. Vasco da Gama, uma seleção ligeira de algumas fotos que possuo. Evitei colocar fotos do Vasco em botequins, tópico que, dada a abundância, constitui capítulo à parte.