Sunday, June 26, 2011

Do lado do silêncio

"Gosto de espreitar o teu sono de criança, quando dormes alheio a tudo, e eu fico a ouvir a tua respiração e a alisar os teus cabelos. Às vezes, chego a pensar que é um desperdício ir dormir, em lugar de ficar a ver-te dormir, porque o tempo voa e em breve já não serás criança."


(Miguel Sousa Tavares, in Não te deixarei morrer, David Crockett)

Friday, June 24, 2011

Aqui Nasceu o Vasco




Tenho duas explicações para a certa controvérsia existente quanto ao local em que se realizou a reunião que deu origem ao C. R. Vasco da Gama.



A primeira é a comezinha, clichê, inda que válida: este é um país de pouca memória, pouco estudo, que não se importa com seu passado e se lixa quando prédios históricos dão lugar a shopping centers. Assim, embora a fundação do Vasco tenha acontecido em 1898, isto é, historicamente um fato não tão passado assim, não se pode afirmar com precisão se esta reunião se deu aqui ou ali porque este é um país sem memória.




A segunda é que a fundação do Clube de Regatas Vasco da Gama pertence à categoria dos mitos, não tendo, portanto, tempo definido. Illo tempore, divide com acontecimentos como o aparecimento da lua, o surgimento de uma montanha, sua existência para além do tempo definido por historiadores, meros mortais.




Assim é que três fontes confiáveis apontam três locais diferentes para a reunião de Henrique Ferreira Monteiro, Luís Antônio Rodrigues, José Alexandre d'Avelar Rodrigues e Manuel Teixeira de Souza Júnior, quatro jovens que, cansados de cruzar a baía para participar de regatas no Club de Regatas Gragoatá, em Niterói (pertinho aqui de casa), decidem, em assembleia realizada no dia 21 de agosto de 1898, na sede da Sociedade Dramática Particular Filhos de Talma, fundar o Clube de Regatas Vasco da Gama.




O Livro do Centenário, a princípio a fonte mais confiável, não precisa onde se deu tal reunião, mas garante que a sede foi instalada num sobrado da Rua da Saúde (atual Sacadura Cabral)











Segundo Gamboa, livro não dedicado a esporte, porém escrito pelo Alexei Bueno, poeta e grande entendedor de história e patrimônio que não costuma errar, a fundação do Vasco se deu na Rua Sacadura Cabral, "antigo número 295". Não entendo o que ele quis dizer com "antigo número" e não vi maneiras de encontrar a atual correspondência deste número com os de hoje. A Sacadura Cabral é que teve outros nomes, bem mais interessantes que o atual, como Rua da Saúde, de São Francisco da Prainha e Praia do Valongo. Curioso é que, se o atual 295 é uma casa térrea, antiga, pouco expressiva, a construção ao lado, de número 297, é um sobradão antigo, ostentando em sua fachada a data de... 1898, exatamente o ano da fundação do Vasco. A foto abaixo é de lá.




Parece-me que ambos os livros confundem o local da primeira reunião com o local da primeira sede, esta sim situada no trecho da Rua Sacadura Cabral que já foi conhecido por Largo da Imperatriz e hoje atende por Praça dos Estivadores. A segunda e terceira fotos deste post são de lá.





O livro de Aldir Blanc, A Cruz do Bacalhau, disponível online aqui, demora-se um pouco neste assunto e é um pouco ambíguo ao afirmar, no corpo do texto, que o ato de fundação deu-se num imóvel situado na Rua da Saúde, 293 (antigo nome da Sacadura Cabral), mas, em nota de rodapé, citando uma publicação oficial do clube de 1983, fecha com a Rua do Propósito, 12, onde funcionava a Sociedade Dramática Filhos de Talma, desde 1897.



O problema é que uma simples visita à Rua do Propósito nos mostra que a sede do Clube Talma, atualmente em restauração, não fica no número 12, mas no 18. Não tem como errar. O atual número 18 possui visivelmente um aspecto de sede de clube, portando inclusive mastros em sua fachada.










Este post do flickr, por exemplo, ainda que otimimamente intencionado, reproduz foto do atual número 12, não percebendo que a sede do clube, prédio aliás bem mais bonito e bem conservado, fica a poucos passos adiante.




Bem, espero ter contribuído um pouco para esclarecer fato tão importante não só para a história do Vasco, como também para história de nossa cidade e de nosso país.


Lembremos que o bairro da Saúde (ou Gamboa, as fronteiras são sutis e por vezes excrescentes) situava-se no coração da cidade antiga do Rio de Janeiro. Ao contrário dos outros clubes, fundados na Zona Sul da cidade, o Vasco, primeiro clube brasileiro de raízes realmente populares, nasceu popular e continuou sendo ao transferir-se definitivamente para São Cristóvão.



Wednesday, June 22, 2011

A CUMPAGNIA // Lamentu di u castagnu




Tenho um CD maravilhoso deste grupo intitulado Tempi di Sumente. A versão deles neste CD é ainda mais bonita do que esta que se vê / ouve aqui.


Este CD foi comprado na finada loja VGM (Você Gosta de Música), no Bairro Alto, em Lisboa, em 1996. A tradição musical corsa baseia-se nas maravilhosas polifonias vocais masculinas. No CD, para além delas, temos também belíssimos entrechos instrumentais, com forte sabor mediterrâneo. Na minha seção de música étnica (evitando a bobice de world music), este CD ocupa lugar de destaque.


E por que me bateu esta vontade repetina de reouvir esta maravilha? Porque as cervejas corsas, Colomba e Pietra, chegaram ao Brasil. Esta última, de que sou fã há anos, leva em sua composição... farinha de castanha, exatamente castanha, do castanheiro de que se faz o lamento nesta canção...


Música única, cerveja de personalidade e terroir... está tudo ligado.

Tuesday, June 21, 2011

Winterreise

Em julho de 1989, empreendi o que então denominei "uma viagem de inverno" para o Caraça. Eu já estivera lá, em 1986, e tornaria a voltar na lua-de-mel, em 1995. Esta viagem de 89 foi, no entanto, a única realizada durante o inverno mineiro.




Em minha mochila já bastante rodada, minhas companhias: Dostoievski e, mais importante, duas fitas cassetes com dois ciclos completos dos lieder do Schubert: o Schwanengesang e, claro, o Winterreise, que quer dizer, precisamente, Viagem / Jornada de inverno.




Não me lembro ao certo quantos dias passei lá, mas foram eles de uma rotina deliciosa. Acordava muito cedo e me embrenhava por trilhas, em busca de macacos. Depois do café, sentava-me de costas para a igrejona gótica e de frente para as serras muito verdes e escuras para ler o Dosta. Depois, tomava a das 11. De noitinha, antes que o lobo guará chegasse, escutava em meu walkman as canções do Schubert. Over and over.




O gênio austríaco, como bom romântico, escreveu suas sinfonias (9 ou 8 e meia, já que uma, a mais famosa, ficou inacabada) e muitíssimo para piano. Ao contrário de seus colegas, não escreveu concertos. Em compensação, 600 canções. Ao ouvi-las,e principalmente na voz desse monstro que é o Dietrich Fischer-Dieskau, pode-se mesmo pensar que a ele bastaram um piano e uma voz e a contundência da língua alemã para encher toda uma sala de concertos.




E toda a vastidão da Serra do Caraça.

Sunday, June 19, 2011

Se a vida te der um limão... faz um sanduíche de pernil.

Por conta de uma greve, estou tendo que dar algumas aulas aos sábados. À tarde. A ideia, a princípio, é desprazerosa. Ao meio e ao fim, também. Enfim.



O que faço é aproveitar o ensejo para fazer um pit-stop no Bar Jóia e lanchar um ótimo sanduíche de pernil. Não é aquela lenda cervantina, ele vem espartano, sem queijos ou abacaxis. Mas o pão é torradinho e o tempero, just rite.




O Bar Jóia, tendo sempre à frente o braguense Cristóvão, é um dos ícones da baixa gastronomia do Jardim Botânico. Quando chego lá de manhã cedinho, sequer abro a boca. É um "Oh professor" e lá estão minha média com pão e manteiga, sendo aquela cortada com um pedaço de leite gelado, e este sem ser na chapa, que essa história de esquentar pão fresco é coisa de noveau riche.




Outro dia contei pro Seu Cristóvão que existe um outro Bar Jóia, centenário, no centro da cidade. Ele ficou muito ensimesmado e incrédulo.




Desse (a) outro (a) Jóia escrevo depois.

Monday, June 13, 2011

Porque nem toda rua.... II













Porque nem toda rua há-de se chamar Rua Comendador Senador Trombogildo Pereira Júnior

















Quando estive em Flores de Goiás, no sertão do sertão de Goiás, descobri que o "casco antiguo" da cidade, abandonado pela população, por Deus e mesmo pelo governo (vejam só), só tinha três ruas. Os nomes: Rua da Água, Rua do Fogo, Rua do Fuzil.


Ah, que delícia morar num lugar assim.


Aqui as ruas em quase a sua totalidade homenageiam a nobreza decaída, a politicagem suja, ilustríssimos desonhecidos de ocasião, enfim, com raríssimas exceções, essa corja de ladrões, estupradores e assassinos.




Mas há (ainda) resistências.

Viva Santo Antônio!


Feliz Dia de Santo Antônio, de Pádua e de Lisboa.

Este não é um azulejinho qualquer. Este se encontra na... Travessa do Sereno.

E sob o risco de pegar sereno é que devem as casadoiras cravar a faca na bananeira.

Sunday, June 12, 2011

Vasco 2 x 1 Coritiba



Embora as lembranças da batalha de Curitiba, em que o heróico Vasco perdeu o jogo mas ganhou algo maior, estejam ainda frescas, vêm-me à mente memórias de um outro Vasco X Coritiba, realizado há módicos 32 anos.

Eram as semi-finais do Campeonato Brasileiro de 1979 e o Vasco tinha um ótimo time, capitaneado pelo Roberto, que então, graças à intervenção do Oto Glória, abandonara seu estilo trombador. O Coritiba tinha o Aladim, mas era, claro, o azarão em meio a Vasco, Inter e Palmeiras. O Verdão de São Paulo deixara o Flamengo literalmente de 4 no Maraca, em jogo de 110 mil pagantes (nunca mais isso, ó Maraca para sempre apequenado e a aburguesado!) em que também estive.

Voltando ao nosso jogo: eu e meu pai, apenas. E a torcida do Vasco. O que tão vivamente lembro: nossos dois gols, tão parecidos. Até ontem achava que os dois tinham sido do Roberto e que o jogo tinha sido 2X0. O youtube, essa máquina com a qual eu sempre sonhara, que esclarece as dúvidas do passado, me informa que foi 2X1, e que o primeiro foi do Paulinho.

Mas essa correção só acerta então minha outra viva lembrança: depois que o jogo ficou 1 X1, começou a chover. Quando chove no Maracanã (estamos em 1979), sobe-se ligeiro para debaixo da marquise. Meu pai e eu, no entanto, continuamos sentados onde estávamos, na chuva. Não sei que técnica xamanística foi essa, mas ficamos sob a chuva até o Roberto aproveitar o passe maravilhoso e cravar a vitória. Outras águas, então, foram adicionadas ao meu rosto já molhado.

E a outra lembrança: um homem desconhecido, do povo, negro, muito povo mesmo, veio até a mim e falou palavras mais ou menos assim: "É isso aí, ser vascaíno é isso mesmo...". Meu pai e eu, dois tímidos encharcados, nada respondemos.

Essa a partida que me veio à lembrança, agora e enquanto eu me escondia debaixo das cobertas durante o jogo da quarta passada. Sob a chuva e sob o granizo, o Vasco uma vez mais trinfou. Não deixa de ser irônico que contra o Coxa, o coxa branca do sul do país, tenha, uma vez mais triunfado o primeiro clube do Brasil a aceitar negros, mulatos e brancos pobres em seus quadros.

Lima Barreto, o grande e maldito escritor, repudiou o estrangeirado e elitista futebol.

É que ele não conheceu o Vasco.

Sunday, June 05, 2011

Carlinhos, ex-motorista do JK, sambista, dono de boteco





Sabe boteco com música de fundo? O Bar do Carlinhos, localizado no lado oculto do já oculto Santo Cristo, no sopé do Morro do Pinto, tem, mas com uma peculiaridade: o que se ouve é composto e cantado por ele.


Sambista de mãos pródigas, Carlinhos compõe a bagatela de uns cinco sambas por dia. Enquanto estive lá, escreveu um. Mostrou-me, sugeri mudanças aqui e ali (eu bebia cerveja), que ele de pronto acatou, pelo menos enquanto eu estava lá.


Seu boteco é pobre pobre de marré deci. A marré anda mesmo baixa, pois nem cerveja tinha, as que bebi comprei ao lado. Mas ele abre, na esperança de melhores dias. Afinal, este homem já foi motorista do JK. Isso mesmo.


Em seu espaço, uma bricolagem de imagens de Nossa Senhora, do Flamengo, fotos antigas e muitos de seus sambas. Basta a citação a uma dessas imagens que Carlinhos desfia suas histórias, serenamente, na cadência do samba e do lugar.


Há pouco tentou uma vaga na Câmara Municipal. Perdeu. Menos mal, já que, como sabemos, quem com porcos anda...


Um dos sambas mais tocados, que Carlinhos Santana confessou autobiográfico,tratava de um sujeito em um situação muito a cavaleiro...


Hoje não,
amanhã talvez
Vou pensar direito
no que você fez.

Saturday, June 04, 2011

Sem saideira



Irão implodir amanhã de manhã a antiga fábrica da Brahma localizada na Cidade Nova, colada no Sambódromo. Para / por quê? Para ampliar as arquibancadas. Ou seja, derrubam-se história e patrimônio para que se possa lucrar mais com o carnaval.


O que choca é que a construção (na verdade, três prédios) era tombada e foi destombada com facilidade assombrosa. O mesmo aconteceu, nestes nossos dias, com o Maracanã. A ideia, portanto, de que o tombamento é garantia de preservação cai por terra. O tombamento garante a preservação, mas só até que entre grana preta para comprar a politicalha. Aliás, a grana já nem precisa ser tão preta assim: políticos e juízes parecem dispostos a vender-se por um bom capão.


A construção, dos anos 40, tinha valor histórico inestimável, mesmo não sendo os prédios originais, do final do século XIX. A fábrica Manufactura de Cerveja Brahma Villiger & Companhia, do judeu alemão Joseph Villiger, quando estabelecida nos anos de 1890, teve a peculiaridade de receber mão-de-obra dos ex-escravos recém-libertos com a Lei Áurea. A cerveja, pois, uniu negros ao alemães e aos judeus. Veem como a cerveja faz amigos?


Daí, aliás, nasceu... o samba!, pois estamos a falar de Praça XI, esta também devidamente sacaneada e completamente destruída em outras obras....

Paul







Sim, fui ao show do Paul, quitando dívida e angústias que tinha para comigo. Fui, vi, vivi, cantei, pulei, já posso subir no telhado sossegado. Este é o tipo do texto que não sei bem como começar, nem como dar prosseguimento, tantas são as abordagens possíveis. Porque estou a falar de Beatles, paixão perene, que carrego sob minha pele há 35 anos e ao escrever estas palavras, exatamente agora, meus olhos umedecem e minha pele fica como a de ganso.




Vive em mim, indelevelmente litogravada em minha memória, a tarde de 1976 em que fui à loja de discos Ton-Ton na Verdun, Grajaú, e comprei o Revolver por 88 cruzeiros. Minha mãe, no carro a esperar, me instruíra para que eu pedisse ao vendedor que tocasse as músicas antes de comprar, "para ver se eu gostava". Assim o fiz, muito cheio de constrangimentos, e o sujeito levantava a agulha música a música, depois de cada meneio de cabeça meu. A introdução de "Love you to" pareceu-me interminável.


Eu tinha só oito anos, mas amei Revolver com todas as forças que um menino casimiriano pode ter. Só um ano depois viria outro, o For Sale. Reparem a minha idade, reparem os anos, 76, 77, anos daquela diarreia musical que se chama disco music.


Sofri bullying ocasionais. Meu irmão às vezes me sacaneava, meus amigos. Não era época para se gostar de Beatles, ninguém sequer conhecia. Eu amava escondido, mistificado. Porque não era apenas "Dr. Robert" ou "Eight Days a Week", eram coisas como "Hey Jude", "I want you (she's so heavy)", "A Day in the Life". O lado B inteiro do Abbey Road. Como, músicas assim? Como, o quê, de onde vinha aquilo? Haveria uma chave para explicar tamanho mistério?


Dos oito aons onze anos foi assim. Não tinha namorada, embora me apaixonasse uma três vezes por dia, mas tinha os Beatles, meu refúgio, meu segredo. Aquele presente que um tio seu te dá, uma pedrinha do Urucuia, uma pedrinha lunar.


Hoje meus alunos gostam de Beatles, o show do Paul reúne, fácil, três gerações. Acho ótimo. Em 1995 não conseguia dar aula direito porque meus alunos ensaiavam passinhos de funk. Hoje eles choram porque não conseguiram ingresso e choram se conseguiram. E eu com eles.


Aliás, o mistério daquelas três músicas, e tantas outras, mesmo as banais como "I'm Down" continua. E olha que passei por muito rock progressivo e muito Prokofiev, Bártok e Shostakovich.