Wednesday, March 25, 2015

Lira dos Oitent'anos

Brasília, 2014


Façam as contas, é número redondo, fácil. Nascido em Cubango em 26 de março de 1935, o avô do Dante, Hélio de Almeida Domingues, de ascendência galega de Pontevedra, completa oitenta anos amanhã.

Presença quase assídua em meus poemas (merece coisa melhor, é verdade), por extensão já apareceu neste blog (aqui e aqui, para citar apenas alguns).

Meus pais se separaram em 74, quando o assunto era ainda tabu. No esquema típico de pais divorciados (com o Dante é diferente), ele ficava comigo e com meu irmão André nos finais de semana. Houve época em que, numa pequena casa, ficavam reunidos sob o mesmo teto : eu, André, ele, sua segunda mulher, os três filhos desta e sua mãe e mais a Daniele, a filha que tiveram em comum (aqui). Era isso: três adultos e seis crianças / adolescentes numa pequena casa de vila em Água Santa, em frente ao presídio. As crianças / adolescentes brigávamos o tempo todo. Hoje olho em retrospecto e não sei como ele, um homem tímido, do mundo dos livros, das ideias, das árvores e estrelas, aguentou isso.

Mas essa é apenas uma das facetas (a paciência quase estoica, a não ser jamais confundida com frieza) desse homem, que fazia o percurso Água Santa-Centro no 238, sempre tendo em mãos um livro, ao qual fazia questão de cobrir a capa, fosse qual fosse. Funcionário público, pegava a kombi da Marinha e ia para a Baixada defender os que não podiam arcar com os honorários de um advogado.

Depois foi para Brasília, para apartamento de janelas maiores, onde reside há quase três décadas. É, de longe, o maior leitor e comprador de livros que conheço (conforme relatei aqui), colocando no chinelo esse mundo de professores-doutores que se contentam com xerox e livros da moda. Dele herdei o amor aos livros e ao silêncio. Dele tento herdar honestidade absoluta, quase irritante. Dele ainda a total falta de jeito de estar no mundo.


LEGADO

O meu pai habitava os flamboyants
que já o habitavam bem antes que ele,
só, habitasse a casa em que as manhãs
vinham surpreendê-lo. Esse hábito --
o de perder-se na leitura -- herdei-o
bem como o de habitar espaços
que imagino e cultivo enquanto leio.
Dele também terá nascido o errar
sob a chuva, o calçar sapatos velhos
e improvável  brilho verde no olhar
quando na face incide luz oblíqua.
Dele, por fim, o sem jeito das minhas
mãos: casa cheia de livro e o desespero
para abrir uma lata de sardinhas.


Asa Sul, 2014

1 comment:

Ana said...

Bela homenagem! E que boas coisas você puxou do seu pai!