Monday, October 31, 2016

Um pouco de Ciro dos Anjos, manso imperador de Montes Claros



Curiosa a carreira literária de Ciro dos Anjos. Em 1937 estreia com O Amanuense Belmiro, a que se segue, oito anos depois, Abdias, no mesmo estilo. 

Em 1956 veio Montanha, obra pretensiosa que, seguindo uma linha experimental de John dos Passos, alinha-se a romances como Colmeia (1951), de Camilo José Cela, e Entre Mulheres Sós (1949), de Cesare Pavese. Pode ser interessante analisar esses romances na sala de aula. Lê-los é maçante demais.

Não sei como foi a recepção crítica da Montanha, não sei se foi o publicá-lo no ano do Grande Sertão, fato é que Ciro parou de escrever. Ficção. Porque então viriam suas memórias, os maravilhosos Explorações no Tempo e A Menina do Sobrado.

Conforme relatei na postagem anterior (aqui), visitei-o por duas vezes. Falo dessas visitas depois. 

Por ora segue trecho do Amanuense, prosa definitiva.

"Afinal, são inúteis essas tentativas de análise e de interpretação de nós mesmos. Há, em nós, abismos insondáveis, que jamais exploraremos, onde se recolhem, pelo tempo que lhes apraz, as combinações múltiplas, várias, tantas vezes contraditórias, que compõem as formas sucessivas do nosso espírito. Explicar-me-ei, dizendo que hoje dormimos arlequim, amanhã acordaremos pierrot. As vestes ficaram guardadas em qualquer guarda-roupa de nossas profundezas onde se amontoam peças de indumentária que variam até o infinito."

Meu Montanha com dedicatória

O Amanuense Belmiro, de Ciro dos Anjos



Tenho duas edições de O Amanuense Belmiro, este romance de discreto charme do mineiro Ciro dos Anjos: uma segunda edição da antológica coleção da José Olympio (sem atribuição da ilustração, que creio ser Santa Rosa) e a décima-primeira edição, com capa de Guimarães Vieira.

A primeira edição, de 1937, saiu pela editora mineira Os Amigos do Livro.

Ambas as edições são autografadas: a mais antiga para Murilo Miranda e a mais recente para um tal de Evandro Luis.

Visitei Ciro, amigo de Drummond e Rosa, em seu apartamento em Copacabana em 1993. Foram duas as visitas. Creio que na primeira mencionei a semelhança de seu estilo com o do Machado, algo que, pobre dos Anjos!, ele deve ter passado a vida inteira escutando. Quando cometi meu pequeno faux pas, ele apenas redarguiu: "São famílias de escritores, famílias espirituais..."

Mestre Candido já dera o juízo definitivo: "Falou-se muito em Machado de Assis a propósito de Ciro dos Anjos, insistindo-se sobre o que há de semelhante no estilo e no humorismo de ambos. O que não se falou, porém, foi da diferença radical que existe entre eles: enquanto Machado de Assis tinha uma visão que se poderia chamar dramática, no sentido próprio, da vida, Ciro dos Anjos possui, além dessa, e dando-lhe um cunho muito especial, um maravilhoso sentido poético das coisas e dos homens."




Um gato morre



um gato morre
morre sem alarde
sob meus olhos

a janela dos fundos
onde jamais ficara
agora o seu lar

os dias as noites
o vento e o sol
o gato recebe
no corpo que definha
onde se processa
o inexorável movimento

tudo isso
os dias o vento
o sol e as estrelas
sob meus olhos

minha mão se estende
com o pequeno quinhão
inútil

inútil este poema
inúteis palavras
farsescas face o movimento
obstinado e calado
que lhe cava os dias
estrelas vento
sol

Terceiro Movimento ::: O ipê-branco do Grajaú



Foi Rubem Alves quem escreveu ::

"Agora são os ipês rosa. Depois virão os amarelos. Por fim, os brancos.
Cada um dizendo uma coisa diferente. Três partes de uma brincadeira musical, que certamente teria sido composta por Vivaldi ou Mozart, se tivessem vivido aqui.
Primeiro movimento, “Ipê Rosa”, andante tranquilo, como o coral de Bach que descreve as ovelhas pastando. Ouve-se o som rural do órgão.
Segundo movimento, “Ipê Amarelo”, rondo vivace, em que os metais, cores parecidas com as do ipê, fazem soar a exuberância da vida.

Terceiro movimento, “Ipê Branco”, moderato, em que os violoncelos falam de paz e esperança. Penso que os ipês são uma metáfora do que poderíamos ser. Seria bom se pudéssemos nos abrir para o amor no inverno…"

Os rosas registrei-os aqui e aqui. Aquele do Tabladinho desde sempre chamo de meu, pois foi nele que tive minha epifania miguiliana. Mas tem um outro que é muito meu também: plantado tão perto, floresce por último, quando já ninguém espera, nem eu nem o porteiro Valderi. Um dia ou dois dias de glória absoluta, para logo depois se despir sobre o cimento indiferente. Aí, torna a enfiar a mão nos bolsos e vai-se miudamente recompondo, arvrezinha inotável por 363 dias. 

Mas quem viu, sabe e toma por ele amor o ano inteiro.





Morro do Castelo ::: Fotos Inéditas



Ainda na ressaca da eleição de ontem: votei no Freixo e torci muito contra o Crivella, não apenas por ser ele o adversário do meu candidato, mas por ele representar o que representa.

Sem bom-mocismo, não torcerei, no entanto, para que o governo do bispo seja catastrófico.

Aliás, o esforço de muitos de nossos alcaides em tornar a vida por aqui insuportável é de tal modo denodado que seria muito difícil conferir a alguém o título de pior.

Carlos Sampaio (1920-1922), com a destruição do Morro do Castelo, será sempre fortíssimo concorrente.

Para os interessados, como eu, nesse episódio tão fascinante quanto trágico de nossa cidade, a atual exposição "Lentes da Memória -- A Descoberta da Fotografia de Alberto de Sampaio", no Centro Cultural Correios, é imperdível. Traz fotos do Castelo jamais antes vistas pelo grande público.






O simpático Alberto com uma sopeira

A simpática Camila

Sunday, October 30, 2016

Fui ao Jacaré e Voltei. Vivo



Faltam alguns bairros em minhas odisseias pelo suburbário carioca, e por um deles nutria eu secreto e maldisfarçado pavor: o Jacaré. Não tenho medo do bicho, tento combater qualquer preconceito que por vezes cisma de surgir em mim e tampouco era pela lonjura: era pegar o Noel Rosa e pronto. Porém, todas as vezes que por lá passara a impressão ruim se reforçava e aqui esclareço: não por ser pobre ou coisa do tipo, mas por parecer-me bastante perigoso. Sou meio doido mas não incauto, não me arriscaria nem que fosse por um imenso afresco do Nilton Bravo. (Hummm, melhor não pensar muito)

Mas eis que passo a seguir no Instagram um sujeito que vira e mexe postava fotos do bairro, todas elas ótimas, todas elas com aqueles elementos de que gosto. Seu nome? Mr. Kurtz, a vida superando a arte. Conversei com ele, animei. Já fui e voltei. Já fiz mesmo postagem sobre o fortim que lá resiste (aqui), sobre pisos de caquinhos (aqui) e sobre botequim com azulejos enxaquetados (aqui). Seguem agora outra fotos, como um raro painel de São Roque do António Igrejas colocado na empena da casa, o que também é bastante incomum.




Muxarábi???




Não parece uma antebellum home??






PS: Explicando o título: voltei vivo porque, afinal, nenhum dos três tiros -- panturrilha, omoplata e pescoço -- foi fatal.

Saturday, October 29, 2016

Botequins : Azulejo Rosa é Coisa de Macho



Já escrevi sobre botequins com padrão de azulejos enxaquetados aqui. Depois fiz até algumas postagens individuais acerca de alguns desses padrões bicolores, como os azuis e pretos (aqui), os brancos e roxos (aqui), os azuis e verdes-piscina (aqui), os azuis e rosas (aqui), que chamei de "constantemente amanhecendo", e os pretos e brancos (aqui).

Todas raríssimas. Mesmo a mais comum, a azul e branco, assaz reproduzida por aí sempre que se fala em botequim carioca, é hoje bastante difícil de se encontrar, em seu estado original, que presumo ser década de 50 e 60.

Pois bem. Não é que hoje, seguindo a dica quente do Henrique Kurtz, encontrei no Jacaré um café e bar todo ele revestido da cabeça aos pés com azulejos enxaquetados na combinação branco e rosa? Morri.

Café e Bar Dois Irmãos é o nome da joia. Outros elementos dignos são o balcão de fórmica, o cardápio na parede, o enorme mapa do Brasil e o relógio Botafogo à frente dos lambris, ladeado pela N.S. Aparecida, uma estrela do mar e vinhos Galiotto.

Ano que vem comemoro aniversário ali.






Thursday, October 27, 2016

Stefan, Escrevedor de Cartas



Bom que, justo neste ano em que enfim conheci a casa de Stefan Zweig em Petrópolis (aqui), tenha eu tido a tão inesperada quanto linda oportunidade de assistir a uma exposição sobre sua faceta epistolar no Centro Cultural dos Correios.

Um luxo uma exposição como esta. Um luxo ao alcance de tantos, só subir escadas, ou pegar o histórico elevador, numa região tão frequentada por frequentadores de cultura.

À exposição bem montada, impossível segurar certo sorriso irônico, sem perder a ternura jamais, ao tomar ciência que Zweig lamentava já o fim das cartas face os jornais e suspirava:

"Mas algo como que misterioso se apartou de nós quando deixamos de ter amor a carta! (...) Algumas coisas só podem ser ditas nessa entonação indescritível que a conversa a dois preserva, e alguns dos comunicados mais cheios de alma do nosso tempo talvez apenas tenham se perdido porque, desaprendemos, ao que parece, a arte da carta."

O que não teria o escritor tão admirado por Freud, com quem se correspondia, em face da riqueza comunicativa do twitter, sms, zazap.


Mais de Zweig no blog aqui.

Caipirinha de Caju Cearense Gordo

Um tranquilo Felipe servindo mais uma de suas maravilhas enquanto o rock comia lá atrás


Começo citando o Simas :: "Com a chegada do calor, exponho uma tese: o tempo nos ensina que o segredo não é beber a bebida que nós gostamos. Isso é erro de criança. O babado é descobrir a bebida que gosta da gente. Se você ama a danada, mas ela te odeia, pula fora. O uísque me detesta e renega. A cerveja, todavia, me ama, quer o meu bem e a minha companhia constante. A tequila me odeia. O gim me execra. O chope me adora."

Perfeito. Tal qual o Simas, a cerveja também me ama, o chope também me adora. O vinho gosta de mim e, ao contrário dele, o whisky tem por mim grande apreço, a que sempre procuro retribuir condignamente. Cachaça e vodka me detestam, tequila e gim sequer sabem quem sou. Quer saber? Acho muito bom assim. Não irei, do alto de meus 84 anos, correr atrás e fazer a corte à cachaça e à aguinha russa.

Talvez porque, em um distante acampamento em Visconde de Mauá, tenha eu beijado muito a Capelinha na boca e depois, claro, chamado o Raul na barraca. Coisa de garoto. Mas a indisposição ficou pra sempre.

Mas como este ano recebemos duas queridas visitas mineiras, a Carol e a Lu, estas acharam, qual embaixadoras da Mina Geral, que cumpria trazer produto local e assim, para além do impagável requeijão caseiro, trouxeram cachaças. De qualidade. Que eu deixei quietas num canto.

Semana passada o grande amigo Felipe também aportou aqui com a simpática namorada, mode ela fazer uma prova e nós dois comemorarmos nossos 30 anos de amizade. E, ai, quais embaixadores do Siará, trouxeram caranguejo, sururu, siriguela e caju, muito caju.

Agora resumo: no sábado levamos o casal ao Bar da Frente, onde, ó milagrosa coincidência, encontramos o Rixa e a Karla. Em seis, pudemos não apenas cair de boca na jambalaya, como provar dos muitos insuperáveis petiscos. E como a tarde no Bar da Frente com amigos põe a gente comovido como o diabo, e eu estava preocupadíssimo com o destino dos carnudos e obesos cajus que rebentavam de tanta madureza, depois esticamos aqui em casa, onde bebeu-se (olha a delícia do sujeito indeterminado) muita caipirinha com cachaça mineira e caju cearense fresco.

E há quem diga que não há Deus.

As cajueiras



Wednesday, October 26, 2016

Tantas vezes por dia em vão pedi




quantas vezes por dia em vão pedi
que calçasses Camila os teus chinelos
ao menos quando fosses à cozinha
e pisasses incauta sobre os gelos
do piso frio. as havaianas todas
que tu herdaste da minha mãe estão
sós num canto e do bairro os pés mais belos
asados deslizam em desafio
melhor muito melhor assim em pelo
nuinhos indomáveis empinados
andasses tu calçada ou de meias
como mas como iria eu sabê-lo?
agora eu me pego em devaneio
sonhando com eles para mordê-los

Tuesday, October 25, 2016

Rosa e o Spoiler em Grande Sertão



Há uma onda agora, parece-me, acerca de spoilers, "não fala que é spoiler", coisas assim. Acho tudo uma bobagem, nem tanto por mau-humor mas por simplesmente valorizar narrativas que não soem colocar no enredo sua importância principal. De modo que podem vir os spoilers que não vão estragar.

Outro dia Keila, irmã da Camila e segundanista de Letras na USP, reclamava no facebook de spoiler durante aula sobre o Grande Sertão. Admitia, no entanto, que a culpa era sua por não estar com a leitura em dia. Bem.

Mas o engraçado é.. não é que o Guima, sempre tão cioso de sua obra, não escrevera ele próprio um reclame para a José Olympio advertindo leitores dos spoilers no GS:V??

O texto todo, tão ele.




Mais Grande Sertão no blog: aqui e aqui.

Monday, October 24, 2016

Clarice entrevista Flora, a demasiadamente lilás



Já escritora consagrada, Clarice Lispector fez diversas entrevistas para a revista Fatos & Fotos / Gente, entre dezembro de 1976 e outubro de 1977. A última, pouco antes de morrer, foi com a artista plástica Flora Morgan-Snell, entrevista que é e não é das mais interessantes da série. Não é porque, ao contrário da conversa com Rubem Braga, não rolou nenhuma empatia entre as duas. E é porque, justamente por isso, Clarice nos apresenta a pintora com traços de (des)velada ironia, o que, naturalmente, não casa bem com os princípios do 'bom jornalismo'.

Já na apresentação:

"A Sr.a Flora Morgan-Snell, pintora, figura quase sempre nas colunas sociais de jornais e revistas, ora por motivo de exposições, ora por motivo de recepções. Aliás, ela própria parece uma figura internacional, lembra boneca estrangeira. Era justo entrevistá-la."

Ou seja, Clarice deixa claro que sua entrevistada era muito mais socialite que artista, impressão de resto reforçada pelas observações cáusticas que fará do mordomo ("Não reparei se usava luvas ou não"), de sua aparência ("estava vestida de gaze demasiadamente lilás, os lábios lilases, as faces lilases, e a sua cabeleira louríssima é muito, muito alta") e de seu sorriso ("Durante praticamente toda a entrevista não parou de sorrir").

Bem, quem sempre ficou curioso acerca dessa figura e de sua obra, tem agora chance de conhecê-las na ótima exposição do Centro Cultural dos Correios.