Enfim inaugurada a brancaleônica exposição itinerante "Ora, direis, botequins" que, despretensiosa, pretende percorrer alguns pés-sujos da cidade.
Abriu ontem no Bar do Mariano, o mais antigo botequim do Grajaú em funcionamento e que conserva a excepcional localização, o teto de gesso, a cantaria das portas, cigarras e flamboyants.
Abaixo o texto que o botecólogo Rixa gentilmente escreveu para a exposição.
By the way, Rixa também fotografa, melhor que eu, e está devendo exposição.
CONVERSA DE
BOTEQUIM SOBRE UMA EXPOSIÇÃO DE BOTEQUINS
Rixa
Como uma criança no parque, que não sabe se corre em direção ao carrossel, à
roda gigante ou à carrocinha de algodão doce, sinto-me excitado entre paineis
bicolores de azulejos, cobogós, flâmulas futebolísticas, propagandas de Café
Capital e o São Jorge iluminado sob as sancas do botequim da esquina. A
diferença é que a criança corre, já eu encosto a barriga no balcão para
"começar os trabalhos". Enquanto sorvo o primeiro copinho de uma
ampola mofada, minha visão viaja por cada canto, minha audição fica atenta a
cada conversa ao lado e meu tato procura um guardanapo para limpar água e
gordura debaixo do cotovelo.
Fosse eu incumbido de escrever o verbete "carioca" no dicionário, a
descrição acima já tomaria boa parte da definição. Mas fui incumbido de falar
da paixão do carioca Evandro Von Sydow Domingues pelos bares da vida. Paixão
esta que, há alguns anos, começou a ser registrada em fotos.
Nossa
herança portuguesa (ainda) pode ser vista na arquitetura do Rio Antigo: no
Centro, Zona Portuária e Zona Norte. Com genuína simplicidade, os bares e
restaurantes foram decorados com lembranças da terrinha. Mas como acontece no
mundo globalizado, o negócio de família vem sumindo mais rápido do que os ovos
coloridos do balcão (em tempo: azul, meu preferido). Seus filhos, brasileiros,
tocaram o comércio em frente. Já na terceira geração, a resistência se revelou
enfraquecida. Aos lusos, em tempos de crise, misturaram-se nordestinos e
papa-goiabas. As franquias limparam os pés-sujos, atendendo ao gosto da
nova clientela. O botequim carioca, como o conhecíamos, torna-se mais um
patrimônio em extinção. E troca-se um azulejo hidráulico aqui, remove-se uma
pintura de paisagem acolá, substitui-se o nome antigo até restarem poucos
vestígios, escondidos por trás de um banner
de cervejaria. Poetas, seresteiros, namorados e cachaceiros, correi!
A exposição Ora,
direis, botequins, que se quer itinerante por botequins cariocas,
divide-se em 4 módulos :: “Paisagens Humanas”, com donos, funcionários e
fregueses; “Nilton e Outros Bravos”, que traz botequins com pinturas de Nilton
Bravo e outros; “O Ludopédio”, que atesta o beijo na boca entre botequim e
futebol, e “Azul e Desejo”, com fotografias de azulejos.
Nilton Bravo, conhecido como "o Michelângelo dos botequins", dizia
ter pintado em mais de 1000 botecos dos anos 70 a 90. No livro Confesso Que Bebi, Jaguar passeia -
trocando as pernas - pelos botequins da tradicional boemia carioca. Numa
estatística pessoal, anotou que em 2001 restavam apenas três murais de Nilton Bravo na cidade, resistindo, bravamente,
nas paredes dos "whiskritórios". O cartunista ficaria feliz de saber
que sua conta estava errada. Assim como sabemos estarão sempre erradas, para
mais ou para menos, as contas que passam de 10 cervejas. De bar em bar, Evandro
tem catalogado, até o ano da graça de 2015, 23 dessas obras "gordura sobre
tela", encimando geladeiras e prateleiras nesses verdadeiros ateliês
disfarçados de botequins. Infelizmente o número de Jaguar estará correto em
breve, pois as telas de Bravo e seus genéricos continuam sumindo a cada ano.
Já a seção “Paisagens
Humanas” nos apresenta uma rica galeria dos habitués
e donos dos botequins. A tarefa aqui não é mole, dada a costumeira
desconfiança. Não à toa Evandro usa sempre o seu celular (praticamente todos os
registros são do seu inseparável Nokia 1020) justamente por ser este uma
ferramenta menos invasiva. E haja cerveja e conversa para conseguir a foto.
E como em conversa de botequim não pode faltar futebol, acuso o vascaíno e
grajauense Evandro de ser um vira-casaca. Não de time, mas de botequim: às
vezes ele prefere os azulejos em combinação verde e branca, outras vezes
amarela e preta, estando sempre na torcida, ainda, por encontrar na próxima
esquina mais uma rara tabelinha preta-e-azul.
Ao todo, 64
registros de uma geografia que abrange 40 bairros da urbe, do Humaitá a Honório
Gurgel, de Vaz Lobo à Glória, passando pelo Morro do Pinto e Morro do
Livramento.
Todo esse papo,
aliás, me deu sede. Então tá combinado: saindo desta exposição, vou ver se encontro
o Evandro lá na esquina.
Rixa é botecólogo