Sunday, December 09, 2012

Viagem, de Cecília



Não tenho nenhuma edição autógrafa da Cecília, mas esta primeira edição do seu primeiro livro (Editoral Império, uma editora portuguesa, de 1939) é um tesouro. Seu lindo ex-libris ("Como uma cegonha que sonha, que sonha e sonha"), a precisa dedicatória: "A meus amigos portuguêses", que me inspirou "Aos meus amigos goeses" da minha tese.

Cecília diz a que veio. Neste Viagem figuram três de seus poemas fundamentais: "Motivo", "Estirpe" e "Destino",

O primeiro é, creio, o seu mais conhecido. Merecidamente. Cecília pura: simples e exato, asa de borboleta e força.

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

O segundo, em versos livres, trata do alheamento do eu-lírico, um dos seus motivos mais caros.

Os mendigos maiores não dizem mais, nem fazem nada.
Sabem que é inútil e exaustivo. Deixam-se estar. Deixam-se estar.
Deixam-se estar ao sol e à chuva, com o mesmo ar de completa coragem,
longe do corpo que fica em qualquer lugar.
(...)
Ah! os mendigos maiores são um povo que se vai convertendo em pedra.
Esse povo é que é o meu.

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Nunca me foi difícil enxergar nessa tribo apátrida os próprios poetas.

"Destino" lança mão de um metro pouquissimamente empregue entre nós: onze sílabas (hendecassílabos ou de arte maior).  Só me lembro do Fagundes Varela fazendo isso. Onze sílabas, com o acento caindo na 2a, 5a, 8a e, claro, 11a.

O efeito é espetacular.

Como em "Motivo", também aqui a quebra de metro: depois dos versos tão longos, o dissílabo "Eu, não".

O efeito é espetacular.

Pastora de nuvens, fui posta a serviço
por uma campina tão desamparada
que não principia nem também termina,
e onde nunca é noite e nunca madrugada.

(Pastores da terra, vós tendes sossego,
que olhais para o sol e encontrais direção.
Sabeis quando é tarde, sabeis quando é cedo.
Eu, não.)

(...)

Pastora de nuvens, com a face deserta,
sigo atrás de formas com feitios falsos,
queimando vigílias na planície eterna
que gira debaixo dos meus pés descalços.

(Pastores da terra, tereis um salário,
e andará por bailes vosso coração.
Dormireis um dia como pedras suaves.
Eu, não.)