Wednesday, May 18, 2011

Os Gay




Acerca de todo o quiproquó em relação ao livro didático Por uma Vida Melhor que, a julgar pela imprensa e por algumas sumidades, tem por intenção ensinar os alunos a falar e a escrever errado, uma comparação parece-me pertinente, inda que eu não desconheça que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.


Há uma semana a mesma imprensa e boa parte da população esclarecida (não falo dos retrógados e machistas recalcados de plantão) enalteciam a decisão do STF de reconhecer a união civil de casais homossexuais. Agora, boa parte desta mesma turma põe-se a uivar de ódio e baba bílis porque uma obra didática deseja tratar de conceitos seriíssimos como variação linguística e preconceito linguístico. Admitem que os “erros” e os “coloquialismos” (do jeito que falam parece que todo falar coloquial é “erro”) podem até estar presentes na fala de personagens (um pouco como o Chico Bento), mas jamais em um contexto sério, como um livro. Pois, afinal, como fica a concordância? (Ou “como fica as concordâncias”, citando um jornalista da Globo que criticava duramente o tal do livro didático).


Bem, gostaria apenas de lembrar que em uma fala como “as casa grande”, a concordância fica muito bem, ela está lá, porém feita de outro modo que não o da Norma Culta (que nada mais é que uma outra variação possível da língua), mesmo porque não existem línguas sem concordância. O falante que diz “as casas grandes” está seguindo uma regra que afirma ser necessário colocar a marca de plural no artigo, no substantivo e no adjetivo para demonstrar que se deseja expressar a ideia de plural. O falante de uma variação linguística que diz “as casa grande” também está seguindo uma regra (não há língua sem regras), uma gramática, uma lógica interna, que houve por bem pluralizar apenas o artigo para transmitir a ideia de plural. Há regra aqui. Não é algo caótico ou aleatório. Ele não vai dizer “as casa grande” hoje, para amanhã dizer “a casas grande” e, depois de amanhã, “a casa grandes”. Ele sabe, ainda que inconscientemente, que ao pluralizar o artigo apenas, todo o sintagma fica no plural. Técnica e cientificamente falando, é uma solução encontrada por uma comunidade de falantes mais econômica do que a que põe a marca de plural no artigo, no substantivo e no adjetivo (eh, redundância!). E para quem aceitar a argumentação até aqui, mas quiser obtemperar, “Ah, mas convenhamos que é coisa de gente preguiçosa”, lembro apenas que o inglês, de maneira análoga, põe a marca de plural em apenas um dos termos, no caso o substantivo, dizendo “the big houses” e não “thes bigs houses”. Falam (e escrevem) assim o acadêmico de Harvard e Shakespeare, e ninguém diz que são preguiçosos.


E onde entram os gays aqui? Ora, quem bradou indignado “Onde fica a concordância?” está levando em conta apenas um modelo possível de concordância, que não pode ser o único em uma língua que possui milhões de falantes. Assim como muita gente bradou “E onde fica a família?”, quando da tal aprovação do STF. Ou seja, existe um modelo de família, o homem, a mulher, os filhos (de preferência um casal), mas este modelo, meus caros, já não dá conta de toda a diversidade e variedade e preferências de toda uma população não apenas brasileira, mas mundial.



Em tempo, sou, sim, a favor de que a escola ensine a Norma Culta (por Oculta e idiota que às vezes seja), mas sempre chamando a atenção para o fenômeno das variações.
Porque acho mesmo, com Barthes, que devemos ser poliglotas em nossa própria língua, dominando o maior número possível de variações, incluindo a tal da Norma. Mas, deixem-me, novamente com Barthes, falar de acordo com as minhas perversões.



Porque língua, afinal, safada e promíscua, existe para dar prazer.

2 comments:

Anonymous said...

Uow, ótimo post, e eu nem sabia sobre esse livro, "ando meio desligado".

Rafael Saint-Clair said...

É mesmo Evandro. Se você visitar o site da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN, www.abralin.org), irá encontrar ótimas críticas resenhadas por alguns linguistas, tendo sido alguns meus mestres. Mas ainda acho que há um problema maior aí. Há, de certo modo, uma falta de interlocução apropriada entre a academia (onde as vozes dos linguistas apenas circulam internamente) e a mídia. Esse preconceito linguístico não é apenas derivado de desconhecimento, mas também por questões políticas. Parabéns pelo post. Rafa