Na pequena mesa da sala livros recém-chegados esperam sua sorte: colhidos para a leitura ou para a estante (o que não impediria leitura posterior, claro). The Golden Gate,
de Vikram Seth, estava ali há alguns meses, a gente se entreolhando, ele
bem vendo que outros passavam-lhe a frente, recém-chegados ou não.
Há poucos dias comecei a lê-lo e aconteceu o que suspeitava: achei genial.
Estou apenas chegando à metade mas para um amante de sonetos como eu, uma
narrativa escrita toda ela em sonetos Pushkin (ou estrofes Onegin, de
vez que foi como o poeta russo escreveu seu Eugene Onegin,
inaugurando a forma) dificilmente não iria me cativar. São 590 sonetos
para ser preciso, no invariável esquema monostrófico ABABCCDDEFFEGG,
sempre em tetrâmetros iâmbicos, isto é, versos octossílabos. Bem, até
poderia dar errado, o domínio de uma técnica não resulta necessariamente
em obra de arte, mas o humor de Seth (wit), seu vocabulário coloquial e
também refinado (diction), seu conhecimento de mundo resultam em sonetos
deliciosos, que invariavelmente termino de ler com sorriso, quando não
aberto riso. E depois de ler dois, quinze, trinta, a gente fica com os
tetrâmetros na cabeça (fraca-forte / fraca-forte / fraca-forte / fraca-forte) e tem vontade de só falar assim, até na hora de
pedir um chopp ('GarÇOM queRIdo, TRAZ um CHOPP').
Abaixo dois exemplo de Seth, que narram o momento em que John tem seu primeiro encontro com uma pretendente (sonetos 2.36 e 2.37). Em seguida, soneto que escrevi na varanda, com os tetrâmetros martelando na cabeça. Não acho muito fácil escrever em tetrâmetros, prefiro os decassílabos, e tampouco acho o português muito apto para eles, de vez que tem palavras maiores que o inglês.
Bem representativos esses exemplos do Seth: coloquiais, divertidos, mas com um rigor espartano por detrás. Amei a rima "I'm / time".
"She's lovely," John thinks, almost staring.
They shake hands. John's heart gives a lurch.
"Handsome, all right, and what he's wearing
Suggests he's just returned from church...
Sound, solid, practical, and active,"
Thinks Liz, "I find him quite attractive.
Perhaps...." All this has been inferred
Before the first substantive word
Has passed between the two. John orders
A croissant and espresso; she
A sponge cake and a cup of tea.
They sit, but do not breach the borders
Of discourse till, at the same time,
They each break silence with, "Well, I'm --"
Both stop, confused. Both start together:
"I'm sorry --" Each again stops dead.
They laugh. "It hardly matters whether
You speak or I," says John: "I said,
Or meant to say -- I'm glad we're meeting."
Liz quietly smiles, without completing
What she began. "Not fair," says John.
"Come clean. What was it now? Come on:
One confidence deserves another."
"No need," says Liz. "You've said what I
Would have admitted in reply."
They look, half smiling, at each other,
Half puzzled too, as if to say,
"I don't know why I feel this way."
O meu soneto:
Se todo dia tem suas horas
(ao todo 24, não?)
é a hora do sol ir embora
que mora no meu coração
se rola cigarra, aí ferrou
melancolicamente eu vou
lembrando as coisas que perdi
a cigarrinha cicia em si
em lá, em sol e aí, né, quem
aguenta? para não chorar
retorno ao velho patamar:
Folheio o Seth, abro uma Heineken
e minha dor tão má, em cacos,
Escala o Morro dos Macacos
Da série 'se explicar estraga?': claro que há ambiguidade em "a cigarrinha cicia em si": em si mesma e na nota si. Também aliteração e onomatopeia: a cigarinha cicia em si . Mas o mais legal é que como o eu-lírico se põe a recordar o passado, a cigarra canta de trás pra frente: si-lá-sol. A nota sol a lembrar também o sol que se põe. Já que falamos em notas, ao fim a dor escala o morro. E ainda a rima: aí, né, quem / Heineken.