Tuesday, December 04, 2018

Cabeça-de-Porco





Pensando estar atrasado para a consulta, entrei esbaforido no consultório para a grande visão desconsoladora: ele estava lotado. Fui ter com a secretária, achei o último lugar vago e sentei-me, entre um menino de seus 10 anos e um senhor que cochilava. Ao levantar a cabeça, vi que tirante o menino e o senhor que cochilava e que já começava a se reclinar para minha direção, todos os demais entretinham-se com o celular, de onde tirei que celular é o melhor analgésico. Deixemos de ironias, talvez não estivessem ali para tratar de dor lancinante, mas para simples rotina. Ou para ajeitar obturação, ponte, canal, retirar pontos, renovar curativo ou quem sabe não fosse um deles amante da Dra. Roseny, sortudo, porque eu bem que queria mas sabia das minhas limitações.

-- Moço? – o menino ao meu lado puxou papo.
-- Hum.
-- Você viu que o espírito de porco lá da minha rua pegou fogo?
-- Como é que é?
-- Isso, o espírito de porco da minha rua pegou fogo.
-- Espírito não pega fogo – respondi, achando alguma graça naquilo, mas ele nem percebeu.
-- Pega sim, moço. O da minha rua pegou. Morreu gente, até. Morreu um velho, morreu uma moça que dizem que foi ela que começou o fogo.
-- Mas como assim, garoto? Como um espírito de porco pegou fogo?
-- Ué, ninguém sabe direito ainda como foi. Dizem que a moça que começou o fogo estava bêbada e que ela começou o fogo porque o Carlão deixou ela.
-- E quem é Carlão? É o espírito de porco?
O garoto deu uma risada gostosa:
-- Que isso, moço?! O Carlão é o mecânico. Dizem que ele deixou ela, ela ficou puta, tacou gasolina em tudo e acendeu fósforo. Depois ela mesma morreu, eu achei bem feito mas minha mãe disse para eu não dizer mais isso.
Não sei bem por quê, perguntei abaixando a voz:
-- É essa a sua mãe? -- apontando com a cabeça para a mulher ao seu lado.
O menino deu uma gargalhada:
-- Que isso, moço?! Essa é minha irmã! Minha mãe tá no serviço.
Nisso o amante da Dra. Roseny à nossa frente levantou a cabeça para olhar-nos. Sustentei o olhar, que isso seu babaca, tu daqui a pouco entra lá, come a Dra. Roseny e vem vigiar minha conversa?
-- Humm. Mas tua mãe pediu pra você não dizer isso, isso de que foi bem feito pra mulher que morreu, e você tá dizendo.
O menino hesitou:
-- Não.
-- Não o quê?
-- Agora eu não estou dizendo. Eu estou dizendo que eu disse.
Arregalei os olhos genuinamente espantado com a sua argúcia. Esse garoto iria dar muito trabalho às mulheres nas discussões, pensei.


-- Conta mais, garoto.
-- Não tem mais nada. É só isso. O espírito de porco pegou fogo. Morava muita gente lá, além do Carlão, da mulher que pegou fogo e do velho. Tinha uns garotos lá que às vezes jogam bola com a gente, mas deles ninguém morreu.

Nisso entendi o que o garoto queria dizer: Cabeça de porco! É isso! O garoto aqui está querendo dizer cabeça de porco e sorri um sorriso enorme, como uma criança ao ver pinguim pela primeira vez, rindo-me por dentro, como há muito não fazia, como nunca na sala de espera daquele consultório. É isso! Cabeça de porco e veio-me à mente o cabeça de porco primeiro situado na Gamboa. Veio-me aquela ilustração grotesca que um dia o professor de História do terceiro ano trouxe para a turma: a de uma enorme barata sobre a cabeça de um porco morto, representação da época para a vitória do prefeito Barata Ribeiro sobre a resistência do enorme cortiço.

Eu já ia corrigir o garoto, triunfante, quando outra coisa ainda veio-me à cabeça, uma lembrança que chegava esbaforida, antes que eu abrisse a boca. Lembrei-me que também eu vivera na infância o incêndio de um cabeça-de porco, aquela enorme construção decrépita que ficava na minha rua Visconde de Santa Isabel e que abrigava dezenas de famílias, centenas de pessoas, resquício de um Rio pré-Pereira Passos sobrevivendo em meio ao bairro-jardim e que se não enfrentava mais impropérios e humilhações, era porque simplesmente os moradores acostumaram-se com o cortiço, aceitavam-no como parte da paisagem e ele, afinal, não incomodava ninguém. Na verdade, melhor até do que não incomodar, era o cabeça-de-porco que fornecia cerveja para a fina-flor da sociedade do bairro-jardim quando todos os botequins e mercados já estavam fechados, e era o cabeça-de-porco que tinha um quartinho nos fundos onde a Leninha recebia os filhos da fina-flor para que fossem iniciados nas delícias da carne.

Aliás, se não me engano, nele também funcionava, no que outrora fora a garagem do que outrora fora um hospital (diziam) uma mecânica. E, agora eu tinha certeza, um dia ele também pegou fogo, numa manhã de dia da semana. Minha mãe, com grande excepcionalidade, deixou que eu descesse, embora já se avizinhassem as horas do banho, do almoço, do ônibus escolar. A chance de poder descer para a rua, numa manhã de dia de semana, era para não se perder. Talvez por isso me lembre tão bem. Cheguei rápido ao local de onde vinha a fumaça, morávamos em pequeno prédio no alto da rua, bastava descer a ladeira, portanto. Ao tomar lugar, tímido, para assistir à operação dos bombeiros, vi que garotos à minha frente, com quem eu nunca brincava. olhavam para mim desdenhosos: “Ih, olha só quem desceu”.

Tive ganas de abraçar aquele menino, mas ele já tinha até se levantado, puxado por sua irmã, olhando para trás numa tentativa de aceno.

Acenei triunfante, levantei triunfante, fosse à merda a obturação. Atravessei correndo o Buraco do Lume e parei no Café Gaúcho, onde pedi um chope, com coquinho, e brindei aos flocos de lembrança da Leninha que ainda se demoravam na minha cabeça.

No comments: