Quando começou essa história de aulas
remotas, pensei logo 'Não vou conseguir'. Entravam aí, claro, insegurança e
contumaz desacerto com internet. Entrava aí minha preocupação com o Dante, eu
tendo que estar com ele, ele atrás de mim, eu me lembrava do Robert Kelly dando
entrevista para a BBC: entra a filha dançando, entra o bebê no andador, entra a
mãe desesperada atrás, puxando filha filho andador e porta. Foi engraçado mas
preferi ver a resposta a isso: se fosse mulher, ela iria sentar a criança no
colo, dar de mamar se necessário e continuar a entrevista.
Nela me inspirei quando anuí: partiu, mas vai ser
como der, como for possível, tenho filho autista em casa e, como já se disse,
tão acertadamente, "não são os filhos que invadem o trabalho, foi o
trabalho que invadiu a vida de filhos e família".
Quando o filho é autista, a parada complica, quem disser que
é a mesma coisa leva sopapo. Virtual.
Dei um curso sobre Pink Floyd que ia das 7 às 7:50. Estive à
frente de uma roda de conversa chamada "(Precisamos falar sobre) Autismo
na Quarentena", que ia das 7:50 às 8:40. Éramos só nós dois. E tantas
outras aulas e orientações. Minha tranquilidade é ouvir o ranger da rede, ao
menos sei onde ele está e que está bem. Os alunos também ouvem o ranger e sabem
onde está o Dante.
Num dia de roda de conversa, ele estava muito quieto, o que
não é bom sinal. Quando terminei, vi que ele arrastara a poltrona para o meio
da sala e nela se refestelara com seu tablet. Suspirei. Tá, Dante, você quer
mais chocolate?
Num dia de Pink Floyd, analisávamos e ouvíamos o The Wall enquanto da sala vinham
barulhos preocupantes e depois um silêncio ensurdecedor. Terminada a aula,
corri para lá apenas para encontrá-lo pelado na rede, as quatro cadeiras da
mesa da sala na varanda. Assim que me viu, falou em sua língua tonal, como se
me visse pela primeira vez: Papaaaaaiii!
Mas foi depois do último encontro das conversas sobre
autismo que ele executou sua magnum opus. O padrão se repetiu: primeiros
barulhos suspeitosos, depois o silêncio desejado por Hamlet. Quando cheguei na
sala, a poltrona estava no centro, o sofá bloqueava a porta da frente e as
quatro cadeiras, grandes, empilhadas na cozinha.
Dante estava sentado sobre a quarta cadeira, devidamente
entronado, Sua Majestade, como na música do Trio Nagô. Estava quieto e feliz.
Sorria. Quando instintivamente levei minha mão à cabeça, ele viu minha testa e,
como sempre, pediu para beijá-la a seu modo:
Bibiiiiii!
Ao que respondi:
Eu também
te amo, meu filho.
Hoje nos acostumamos um pouco. Ele às vezes vem e se senta
no meu colo, gosta de olhar os rostos na tela do computador, mas por pouco
tempo. Outras vezes pede beijos,
shantalas, balões. E pede sempre que eu deixe a porta aberta, no que o
respeito totalmente.
PS: Publiquei este texto no final do ano passado, mas o reescrevi, aumentando-o. E a postagem mais bonita com a almofada linda que a Graça nos deu hoje