Sunday, September 27, 2020

Adolescência Autista ou A Invenção do Diabo

 


Foi Eustacia Cutler, a mãe de Temple Grandin, quem disse 'A adolescência já é dificílima para qualquer criança, mas a adolescência autista é invenção do diabo'

Cito com sorriso nos lábios, ainda mais vivendo nesta teocracia fundamentalista insuportável em que se transformou o Brasil.

Há exato um ano e um mês eu já descrevera em haikai :

o pai se apavora
a pentelheira do Dante
lentamente aflora
 
Um sorriso nos lábios, sim, mas esse adolescer já me oferece seu grão de angústia na mão esquerda, quando, por exemplo, tem suas crises de ansiedade amplificadas pela masturbação. Sigh, não deveria ser o contrário? A outra, a outra mão, continua acariciando os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura / e o mistério que além faz os seres preciosos
 
Tudo isso vem a propósito de Um Sopro no Coração, de Malle, assistido ontem e de onde fiz os stills
 



Tuesday, September 22, 2020

De cantos guturais, leite de égua, físicos e rock progressivo

A ser feito antes de morrer (de preferência) : assistir a um concerto do Michael Nyman. Visitar Tuva. Explico.

Conheci o Khoomei, o canto diafônico, o throat-singing dos Tuva, há quase trinta anos, na casa de um aluno particular que trouxera CD de Lisboa. Fiquei mesmerizado. Ele me emprestou o CD, o mesmo que tenho até hoje (quando fiz menção de devolver, ele, sabedor de minha paixão, renovou o empréstimo. Ao menos é esta a minha versão).

Richard Feynman, notável físico norte-americano, sentiu e cultivou paixão semelhante por Tuva, parece que nele desperta através de sua coleção de selos. Fez da ida à Tuva tal objetivo de vida que sobre eles (físico, objetivo e Tuva) escreveu-se Tuva or Bust -- Richard Feynman's last journey. Não será demais lembrar que o emérito físico esteve no Brasil por duas vezes, nas décadas de 50 e 60, e tocou pandeiro nos Farçantes de Copacabana (sim, com cedilha), quiçá preparando-se para a grande viagem de sua vida -- Tuva.

Se eu tivesse a chance de assistir a um recital de canto diafônico tuva numa sala de concertos em qualquer lugar do mundo, iria correndo, claro. Mas a vontade mesmo é de ouvi-lo in loco, de preferência vindo de amadores, animados que estaríamos depois de uns goles de araga, a vodka local feita com leite de égua.

 


No álbum The Rainmaker (2001), os Flower Kings usam o Khoomei em dois momentos: na música inicial "Last Minute on Earth" e no final de "Thru de Walls".



Sunday, September 20, 2020

Sopa de Feijão Branco com Camarão e Sálvia

Com o duplo propósito de tirar o feijão do papel de coadjuvante e pensá-lo em combinações pouco usuais -- propósitos que se entrelaçam -- fizemos esta semana duas receitas diabólicas, inspiradas pelo livro lindo Feijão, da Coleção Aromas e Sabores da Boa Lembrança.

A primeira foi um feijão branco com filé de porco. Até aí não tem novidade, afinal não existe feijoada? Mas com muito, muito tomate. Eu nunca tinha comido feijão assim com tomate. Ficou delicioso.

A segunda, um pouquinho mais ousada, foi uma sopa de feijão branco com camarão e sálvia. A noite estava quente, até Camila suou. Mas não conseguíamos parar de comer.

Sálvia vem do latim salvare e por muitos séculos era a panaceia por excelência. No século XII o frontão da Escola de Medicina de Salerno exibia: "Como pode morrer aquele que tem sálvia em seu jardim?", que já adaptamos para 'Como pode entristecer aquele que toma sopa de feijão, camarão e sálvia?'

Aliás, minha Witzelsucht deitou e rolou com a sálvia, mas deixarei aqui um registro apenas:

 Mando receita de sopa 

De feijão branco, camarão e sálvia

Se  não gostar, delete-a 

Se gostar, salve-a.

Não é um poema, é meramente trocadilho. Ao menos tenho consciência disso, ao contrário dos poetastros hodiernos








Thursday, September 17, 2020

Nunca


Conduzi por quase dois meses uma roda de conversa, remota claro, sobre autismo. Direcionada aos responsáveis do Colégio de Aplicação da UFRJ, mas não limitada a eles. Participaram também profissionais do Serviço de Orientação Educacional e do Núcleo de Educação Especial e Inclusiva do colégio, que muito agregaram.

Como, por força das férias, eu não poderia estar presente a alguns encontros, convidei o Luiz Fernando Vianna, autor do lindo Meu Menino Vadio : Histórias de um Garoto Autista e seu Pai Estranho, já devidamente mencionado aqui e aqui.

Luiz Fernando aceitou o convite. Depois declinou. Disse estar passando por uma fase difícil com o Henrique, especialmente difícil por causa do isolamento social, e que portanto não se sentia à vontade para conversar sobre o tema. Talvez não tivesse as 'melhores' palavras no momento.

Eu entendo. Muuuito bem. Agradeci de coração, desejei-lhe força e, de modo a fazê-los presentes em nosso último encontro (sou insistente, aprendi com o Dante), li para o grupo o último capítulo do seu livro, 'Nunca': (Confesso que na ocasião fiz algumas pequenas edições -- não censura! --, afinal estávamos em ambiente escolar e não eram nem 9 da manhã.)

O capítulo ::

Meu filho nunca saberá completamente a dor e a delícia de ser o que somos, mas quem sabe?

Nunca se consumirá de êxtase na paixão mais incendiária, aquela que o faria pleno, conectado ao centro do sentido de estar vivo, abolindo qualquer fronteira entre passado, presente e futuro, entre perto e distante, pois convicto de que tudo o que importa se dá aqui e agora, e assim será sempre. 

Mas também nunca se consumirá de desespero na paixão mais incendiária, a mesma que, dias antes, o deixara pleno, certo de que seu futuro seria tão maravilhoso quanto o presente -- que agora já é passado.

Jamais sentirá seus órgãos se esfarelarem, virarem cinzas que não param de queimar e corroem todos os ossos, do calcâneo aos chifres, dor que pode aniquilar qualquer vestígio do que um dia foi um animal racional, tornando essa besta-fera capaz de, em nome de uma solução para sua agonia, visitar a torcida do Vasco com a camisa do Flamengo, agarrar a mulher do Capitão Nascimento ou, pior, implorar perdão e cantar de joelhos “volta, vem viver outra vez ao meu lado” para a pessoa responsável por toda essa desgraça.

Talvez nunca foderá, nunca tomará porre com amigos, nunca terá amigos.

Mas nunca brochará, nunca terá ressaca e nunca romperá amizades.

Não namorará.

Nem casará! Nem se separará!

Não dará orgulho à família como brilhante médico, notório advogado ou aclamado artista.

Mas não será jornalista.

Nem político reacionário. Nem subcelebridade.

E copio Argemiro Garcia: “Duvido que ele venha a se tornar um canalha. Isto nunca ouvi falar que um autista fosse.”

Com suas poucas e quase incompreensíveis palavras, meu menino será o exemplo de concisão que sempre sonhei ser. Palavra desnecessária não é para ser dita. É o que ele diria se pudesse ou achasse necessário.

Nunca lerá Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Raduan Nassar.

Nem colunistas neofascistas, comentaristas de internet e jovens escritores achando que são os novos Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Raduan Nassar.

Henrique nunca será absolutamente louco a ponto de largar família e emprego. Jamais sonhará com o impossível.

Mas será sempre um pouco louco. E, possivelmente, um sonhador, mesmo que os outros não saibam com o que sonha.

Meu menino nunca será totalmente feliz. Mas quem o é?

E nunca, tomara, será irremediavelmente infeliz.

E tantos o são, não?

Monday, September 14, 2020

"I'm not getting what I want even when I'm getting what I want" ou A Era da Ansiedade pt. I


W. H. Auden publicou seu longo poema The Age of Anxiety em 1947. A Europa vivia ainda sob os escombros da 2a Guerra e olhava para o futuro com pavor, afinal foram duas grandes guerras em 30 anos e a próxima poderia ser a final. Desânimo, frustração, pavor. Ansiedade.

Leonard Bernstein não esperou a década de 40 acabar (ansiedade?) para escrever sua segunda sinfonia, baseada no poema de Auden e também chamada The Age of Anxiety, nome também usado por Pete Townshend para batizar seu primeiro romance, lançado ano passado. 

Temos uma tendência para pensar que nunca houve uma era como a nossa, mas creio não haver exagero algum para usar a expressão 'A Era da Ansiedade' em um momento de pandemia. Principalmente no Brasil, abandonado à própria sorte.

Num nível doméstico, aqui em casa sempre houve era da ansiedade. Crises de ansiedade são de tal modo comorbidade que, assim, como o TOD, não consigo imaginar o autismo do Dante sem elas. É possível que exista autismo sem crises de ansiedade. Eu não consigo imaginar. Deve ser bom.

Normalmente associamos ansiedade a frustrações ou situações difíceis, eventos que possivelmente serão desagradáveis: uma prova difícil, uma apresentação oral, uma entrevista de emprego, o chefe diz que precisa conversar algo importante, mas com o Dante as ondas de ansiedade podem vir tanto com a negação de um segundo copo de chocolate quanto com a promessa de batata frita na casa da tia Kátia. Coisas boas também geram tsunamis. A demora em consegui-las, idem. Exemplo: adora andar de carro, mas, recentemente, depois que o Uber chegou depois de demora anormal, ele já estava tão absurdamente ansioso que não aproveitou absolutamente nada do passeio. 

Isso me deixa particularmente triste: ver que a ansiedade evita que ele se sinta bem mesmo quando está fazendo o que gosta. Daí, o 'I'm not getting what I want even when I'm getting what I want', tirado do The Dying Animal, do Philip Roth. O contexto é inteiramente diferente -- um cara maduro apaixonado por uma moça -- mas a ansiedade é basicamente a mesma. 


O Rock Progressivo e seus Solos de Bateria Maravilhosos


Muita gente boa por aí torce o nariz ou vira a cara ou franze o cenho quando se depara com solo de bateria em disco de estúdio. Ora, qual o problema? Se não for de 15 minutos, por que só guitarra ou teclados pode?

 Curioso que nos últimos dias andei ouvindo discos de rock progressivo, de estúdio, que têm seus solos de bateria, cada um com sua particularidade.

O IBIS, em seu álbum de 1974, tem o solo lá pro final do disco. Um pouco mais de 4 minutos.

O EDUARDO BORT é bizarro por aparecer logo na primeira música! Uma música de 4 minutos e meio! Isso só reforça que faltou ao disco uma produção mais cuidada, mas who cares, o disco é lindo, o solo é ótimo e depois o baterista irá tocar Mellotron na faixa 'Yann".

O FLOR DE LOTO, em seu primeiro genial disco, arrasa em "Suculentas frutas". O vigoroso solo, de 1'30'' vem logo depois de um solo de baixo

Por fim, o basco ERROBI. Aqui quase 3 minutos de um solo de bateria / percussão tremendamente original.