Conduzi por quase dois meses uma roda de conversa, remota claro, sobre autismo. Direcionada aos responsáveis do Colégio de Aplicação da UFRJ, mas não limitada a eles. Participaram também profissionais do Serviço de Orientação Educacional e do Núcleo de Educação Especial e Inclusiva do colégio, que muito agregaram.
Como, por força das férias, eu não poderia estar presente a alguns encontros, convidei o Luiz Fernando Vianna, autor do lindo Meu Menino Vadio : Histórias de um Garoto Autista e seu Pai Estranho, já devidamente mencionado aqui e aqui.
Luiz Fernando aceitou o convite. Depois declinou. Disse estar passando por uma fase difícil com o Henrique, especialmente difícil por causa do isolamento social, e que portanto não se sentia à vontade para conversar sobre o tema. Talvez não tivesse as 'melhores' palavras no momento.
Eu entendo. Muuuito bem. Agradeci de coração, desejei-lhe força e, de modo a fazê-los presentes em nosso último encontro (sou insistente, aprendi com o Dante), li para o grupo o último capítulo do seu livro, 'Nunca': (Confesso que na ocasião fiz algumas pequenas edições -- não censura! --, afinal estávamos em ambiente escolar e não eram nem 9 da manhã.)
O capítulo ::
Meu filho nunca saberá completamente a dor e a delícia de ser o
que somos, mas quem sabe?
Nunca se consumirá de êxtase na paixão mais incendiária, aquela que o faria pleno, conectado ao centro do sentido de estar vivo, abolindo qualquer fronteira entre passado, presente e futuro, entre perto e distante, pois convicto de que tudo o que importa se dá aqui e agora, e assim será sempre.
Mas também nunca se consumirá de desespero na paixão mais incendiária, a mesma que, dias antes, o deixara pleno, certo de que seu futuro seria tão maravilhoso quanto o presente -- que agora já é passado.
Jamais sentirá seus órgãos se esfarelarem, virarem cinzas que não param de queimar e corroem todos os ossos, do calcâneo aos chifres, dor que pode aniquilar qualquer vestígio do que um dia foi um animal racional, tornando essa besta-fera capaz de, em nome de uma solução para sua agonia, visitar a torcida do Vasco com a camisa do Flamengo, agarrar a mulher do Capitão Nascimento ou, pior, implorar perdão e cantar de joelhos “volta, vem viver
outra vez ao meu lado” para a pessoa responsável por toda essa desgraça.
Talvez nunca foderá, nunca tomará porre com amigos, nunca terá
amigos.
Mas nunca brochará, nunca terá ressaca e nunca romperá amizades.
Não namorará.
Nem casará! Nem se separará!
Não dará orgulho à família como brilhante médico, notório
advogado ou aclamado artista.
Mas não será jornalista.
Nem político reacionário. Nem subcelebridade.
E copio Argemiro Garcia: “Duvido que ele venha a se tornar um
canalha. Isto nunca ouvi falar que um autista fosse.”
Com suas poucas e quase incompreensíveis palavras, meu menino
será o exemplo de concisão que sempre sonhei ser. Palavra desnecessária não é
para ser dita. É o que ele diria se pudesse ou achasse necessário.
Nunca lerá Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Raduan Nassar.
Nem colunistas neofascistas, comentaristas de internet e jovens escritores achando que são os novos Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Raduan Nassar.
Henrique nunca será absolutamente louco a ponto de largar
família e emprego. Jamais sonhará com o impossível.
Mas será sempre um pouco louco. E, possivelmente, um sonhador,
mesmo que os outros não saibam com o que sonha.
Meu
menino nunca será totalmente feliz. Mas quem o é?
E
nunca, tomara, será irremediavelmente infeliz.
E
tantos o são, não?