Li a novela "Oscarina" que dá nome ao primeiro livro de contos de Marques Rebelo (1931) tão logo o comprei, e nisto lá se vão vinte anos. Não gostei (relembro hoje, lendo as notas rabiscadas a lapis nas margens) e daí não prossegui a leitura.
Retomei o livro ontem, deixando a novela inicial para o final. A estratégia deu certo ou em 93 eu não estava pronto para Oscarina ou Oscarina não estava pronta para mim. O livro é uma pequena joia, em seus pequenos paineis da pequena burguesia da Zona Norte carioca. Pequenas existências estagnadas, sonhando preguiçosamente nas pensões futuros que jamais se realizarão. Daí o uso frequente do futuro do pretérito ::
Agora, porém, a clareza da sua vida futura foi tão imprevista que não lhe permitiu traçar logo, com aquele imponderável bom-senso de que se sentia senhor, a linha reta do seu proceder. E qualquer resolução sua, funda, formal, decisiva, poderia passar aos olhos dos que o cercavam como a mais absurda das coisas. Ele bem sabia que a boa Dona Lola jamais acreditaria que aquele magro hóspede, funcionário de fraca categoria no Banco Germânico, pudesse ter tragédias interiores, necessidades dolorosas de cérebro e coração, rasgos estranhos de libertação. Tais coisas eram naquela pensão familiar do Andaraí, cheia de cadeiras de vime e reposteiros de chitão, apanagário exclusivo do Dr. Fontes, viúvo (...) ("Espelho")
Aí o futuro do pretérito para dar ação à inação, daquelas vidas que poderiam ter sido mas não. No trecho abaixo, do conto "Em Maio", o uso do futuro do presente serve apenas para realçar as rotinas previsíveis. E mesmo assim, note-se a passagem deste para, novamente, o futuro do pretérito :::
Você vai agora para a matinê, que é o seu vício de domingo, assistir à mesma fita que empolgou o militar e que o colegial aguentou indiferente. Invejará a estrela porque é bela e você não é, calculará a riqueza das toaletes que jamais você vestirá e como não tem um rapaz apaixonado, para sussurrar junto à sua boca as frases embriagadoras dos romances, sentirá tristeza onde todos se divertem, só tendo um gesto bom ao comprar mariola para o maninho, que está aborrecido porque não compreende absolutamente aquelas cenas longuíssimas de beijos e abraços. A inquietude está com você, além da incerteza do que será amanhã.. E poderia assistir à mesma fita, tranquila, pelo meu braço. Quando começasse a inveja, eu saberia adivinhá-la e haveria de dizer ao ouvido Você é mais linda! Sorriria, balançando a cabeça num consentimento mole: São teus olhos... - Você é a única estrela no céu negro da minha existência - continuaria. Que lindo pensamento! Volveria para mim os enormes olhos glaucos, onde brotava a mais muda das admirações. E hoje é com o irmãozinho bochechudo que vai à matinê. Vai. Eu fico.
E assim ficam. Perdidos em devaneios, um modo de escapar à sensaboria da realidade. Um outro jeito é a morte. No único conto ambientado na Zona Sul, o ótimo "Onofre, o terrível ou a sede de justiça", o mata-mosquito sonha encabeçar formidáveis revoluções sociais ao deixar de exterminar as larvas de mosquito que então matariam os ricos de febre-amarela, quando ele mesmo termina fulminado por ela.
Se um paralelo com Dubliners seria forçar a mão, comparação válida aqui será com Winesburg, Ohio, de Sherwood Anderson, e seus grotescos : "The grotesques were not all horrible. Some were amusing, some almost beautiful".
Legenda da foto : Encantado, onde Seu Santos, pai de Jorge / Gilabert,
planeja comprar um terreno a prestações, para mais tarde construir uma
casinha, pequena, mas confortável. Bangalô é que não. Queria uma casa
decente.