Tuesday, November 16, 2021

O desgoverno que deprime e mata

Este acima é o Raul Córdula, notável artista plástico paraibano residente em Olinda, 78 anos. Tive a honra de estar com ele por duas vezes, na segunda praticamente só conversamos sobre o Paêbirú, esta obra-prima da psicodelia brasileira lançada em 1975. Não fosse o Raul, neca de Paêbirú, de vez que foi ele quem apresentou a Pedra do Ingá a Lula Côrtes e Zé Ramalho. E escreveu ainda as letras da primeira música, "Trilha de Sumé".

Meu primeiro encontro com Raul foi em novembro de 2019, em sua casa. Tomamos delicioso lanche cheio de pernambucanidades: ele, sua companheira de lutas e artes Amélia Couto, seu sobrinho que intermediou o contato, Bao, e eu. O segundo foi quase dois anos depois, há pouco mais de um mês: ambos, ele e companheira, alquebrados. Raul confessou-me deprimido por causa deste desgoverno. E não era só força de expressão.

 

 

Este aí de cima é meu pai, que continua o mesmo leitor voraz de sempre. Este ano, aos 86, descobre Tolstói. Paixão fiel e adolescente, pela intensidade. Em nove meses, leu uns 20 livros dele e sobre ele, incluindo obras mediúnicas.

Quando fomos pra sala comer as empadas de camarão do Caranguejo que sempre lhe levo, revelou que já nem lê jornais, para não esbarrar com fotos da familícia, que lhe dão engulhos. E me disse (*suspiro) que já não se importa em "desembarcar", gíria maruja que usa para "morrer", já que o estado de coisas no Brasil hoje lhe faz muito mal.

Então se você votou 16 + 1 e continua defendendo, saiba que você é responsável por isso.

E nesses se incluem o Bao, o sobrinho graças a quem conheci o Raul e meu amigo de 30 anos anos, hoje ferrenho negacionista, e que não merece os tios que tem. Quanto a meu pai, responsáveis pelo seu desgosto incluem-se pessoas muito, muito próximas que, de tão cegas, não enxergam os efeitos de sua ignorância, alienação e egoísmo sobre aquele a quem dizem amar.

Tuesday, November 09, 2021

Mestre Zuza, de Tracunhaém

Sempre quis ter uma peça do GTO, assim como sempre quis ter gravura do Samico. Ao travar contato com mestre Zuza, santeiro de Tracunhaém, encomendei-lhe não um santo, desses que ficam no chão, mas a cabeça de uma Nossa Senhora. Ele acedeu, as negociações foram ligeiras. Animado, encomendei-lhe em seguida peça semelhante a uma roda-viva do GTO, enviando-lhe fotos. Sei que as do mineiro Geraldo Teles Oliveira são em madeira, a dele seria no barro, mas minhas dúvidas culposas não passavam por aí mas na intervenção que eu poderia estar fazendo. Se Mestre Zuza não faz esse tipo de coisa, teria eu o direito de pedir? O anjinho bonzinho do ombro esquerdo dizia que sim, que artista (de todas áreas, quantas peças musicais não foram encomendadas?) gosta e precisa de encomendas, que lhe garantem o sustento. Para além disso, coisa que não ocorreu ao anjinho, uma encomenda dessas poderia abrir-lhe novas possibilidades de trabalho e mesmo destacá-lo no cenário da Zona da Mata, já que de ordinário o artesanato ali está centrado em santos. Minha pretensão.

Bem, Mestre Zuza concordou em fazer a peça. Iniciou, mandou foto, dei sugestões, ele retificou. Depois foram, sua roda-viva e a cabeça de Nossa Senhora para o forno, o fogo e seus mistérios. Aí já não funcionou tanto, ambas as peças não saíram bem como prevíramos.

Isso tudo foi eu no Rio e ele lá, em Tracunhaém. Quando enfim vou lá, almoçamos galinha cabidela na Toca do Caranguejo, com cachaça amadeirada por saideira. Conheci seu ateliê e consegui até que ele tirasse o boné para uma foto. Das duas encomendas, deixei a Nossa Senhora lá, trouxe a roda-viva. E a amizade. Não vejo a hora de voltar para o maracatu de baque solto







Alma Gêmea ~ Di Melo

Para todos os efeitos, o disco único de Di Melo pode ser lembrado (e cultuado) com ótimo representante da black music brasileira, soul e funk, lançado justamente no ano em que o maior representante desses estilos no Brasil, Tim Maia, entrava em sua fase racional: 1975

O que mais gosto nele, no entanto, é a inesperada presença do bandoneon em "Conformópolis" e "Sementes". Tão inesperada quanto bonita. A Wikipédia não dá os créditos, o dicionário do Cravo Albin credita-o ao pai do Taiguara, mas é o próprio Di que se recorda, séculos depois de morrer e renascer, que quem tocou foi o bandoneonista do.... Piazzolla! Di só não lembrava o nome do sujeito (Ruben Romero?).
 
Mas o que gosto ainda mais é "Alma Gêmea". Não é black music nem tem bandoneon, mas é linda demais. E tem a flauta de um tal de Hermeto Pascoal
 

 
 


Friday, November 05, 2021

Equipe 84, Chico Buarque e o Menino Jesus

Equipe 84 foi das bandas beat mais famosas da Itália, naquele período proto-prog, indeciso ainda entre a cópia de modelos anglófonos e a tradição da canção italiana. Se não chega a gravar álbum veramente prog, como, por exemplo, I Giganti e seu esplêndido Terra in Bocca, pela Equipe passaram nomes como Franz di Cioccio e Maurizio Vandelli, que em 1972 produziria o primeiro álbum da Reale Accademia di Musica (e aqui comparem-se os acordes iniciais de "Un brutto sogno" com os de "Ognuno sa"). Para todos os efeitos, é lembrada em livros importantes sobre o movimento progressivo italiano, como o do Paolo Barotto, o do Maurizio Galia e o do Augusto Croce.

Em 1971, justo o ano inicial do progressivo italiano, Lucio Dalla apresenta no Festival de Sanremo (que nada tinha de prog e servia mesmo de contraexemplo para o movimento) sua canção "4 Marzo 1943" que termina em terceiro lugar e se torna grande sucesso na Itália. Acompanhou-o no festival a Equipe 84, que posteriormente gravou sua própria versão, que fez mais sucesso ainda que a do Dalla. Curioso, não? Não para por aí: o nome inicial da música era "Gesù bambino", mas para evitar problemas com a censura (!), Dalla trocou o nome para a data do seu aniversário.

Chico Buarque incluiu versão sua em Construção de 1971 com o nome de "Minha História". Está ali escondidinha, penúltima faixa do lado B, a única música do disco não composta por ele. E eu, que posso ser acusado de várias coisas menos de ufanista (ainda mais agora), acho que a versão do Chico -- o arranjo, a voz, a viola, a percussão, os vocais do MPB 4 -- põe a gente comovido como o diabo








Thursday, November 04, 2021

A menina que repetia palavrões baixinho, para aprendê-los

No trigésimo capítulo da primeira parte de Ressurreição, o narrador nos descreve a cela para qual retorna Máslova, que acabou de ser julgada e sentenciada a quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria.

 A cela em que Máslova ficava era um cômodo comprido, de nove archin de comprimento e sete de largura, com duas janelas, uma estufazinha proeminente com paredes esfoladas e beliches feitos de tábuas rachadas pela secura, que ocupavam dois terços do espaço da cela. No meio, em frente à porta, havia um ícone escuro com uma velinha de cera colada e com um empoeirado buquê de sempre-vivas embaixo. Junto à porta, à esquerda, havia um lugar enegrecido no chão, onde ficava uma tina fedorenta. Tinham acabado de fazer a chamada e as mulheres já estavam trancafiadas para a noite.

Ao todo, os residentes na cela eram quinze: doze mulheres e três crianças.

Segue-se a caracterização das prisioneiras, magistral e dura, dureza só atenuada pela presença das crianças. É justamente uma dessas crianças que nos fornece a parte mais bonita, exemplo perfeito do conceito de "detalhe sensível".

Quatro das doze mulheres estão de pé à janela, interagindo aos gritos com os prisioneiros no pátio. E agora:

Sua filha, uma menininha de sete anos, de cabelos brancos e desgrenhados, só com uma pequena camisa e mais nada, estava ao lado da ruiva, segurava-a pela saia com a mãozinha magra e miúda,e com os olhos parados, escutava atentamente as palavras obscenas que as mulheres trocavam com os prisioneiros e as repetia num sussurro, como que para aprender.

 

O grifo acima é meu, e repito: "escutava atentamente as palavras obscenas que as mulheres trocavam com os prisioneiros e as repetia num sussurro, como que para aprender."

Muitos escritores calibrados podem descrever com desembaraço uma cela de prisão e narrar a interação entre algumas de suas ocupantes e prisioneiros pela janela. Só um grande escritor irá se deter nesse detalhe sensível -- da criança que repete palavrões baixinho para memorizá-los --, revelando excepcional poder de observação, utilizado aqui para humanizar ambiente tão hostil.

Sem falar que é um detalhe extremamente cinematográfico.

Tuesday, November 02, 2021

Inclusão começa em casa. Exclusão também


 Dante tinha duas semanas de vida quando uma amiga da época estava em Niterói e então me convidou para ir ao Mercado de Peixe. Respondi que não dava. Para ouvir: "Olha, se você não pode sair, você está limado", colocando grande ênfase na última palavra. Fiquei meio chocado.

Com o diagnóstico de autismo, aí todo mundo some. As pessoas veem matéria na TV sobre autismo e ficam com os olhos marejados, mas ajudar minimamente irmão, sobrinho, primo, tio que tem autismo, ou que são cuidadores de autistas, ah isso é muito chato! Então disfarçam, dão um jeito de fazer inversões formidáveis para que você seja o errado, o mimizento, e deitam tranquilas as cabecinhas no travesseiro. Comem a consciência com Nutella, como Lampião comeu a dele com farinha.

Durante a pandemia, não houve um único von Sydow ou Domingues que se oferecesse, por exemplo, para dar um passeio de carro com o Dante. Ele que tanto gosta (e eu não dirijo). Daí pra baixo: agora já é abertamente excluído de aniversários e o (literalmente) tiozão que se compromete a recebê-lo em sua casa por um dia se lembra depois que precisa sair pra pescar. E sai pra pescar.

Este texto não está sendo escrito em momento de raiva, mas de serenidade. Hoje até prefiro assim. Minha régua hoje é como as pessoas agem em relação ao Dante. Se se interessam, se acheguem. Se não, podem ir embora. Na verdade já foram. E nem nos importamos mais.



Monday, November 01, 2021

LANGRA

Não adianta guglar muito: "langra" vai sempre cair no Alto Maranhão, distrito de Congonhas, pois talvez hoje a dança só exista por lá. Ainda tem, com a graça de Nossa Senhora do Rosário, muito congado, algum moçambique, algum catopês, alguma marujada. Langra só no Alto Maranhão, ali com Seu Geraldo.

 Zezeca, que me apresentou a ele, já advertira: se ele começar a falar, não para. Se for falar de banda, então... Mas dá gosto, eu ficava ali uma manhã inteira, aliás fiquei quase isso. 

Em 1959, Geraldo aprendeu a dança da langra com Luiz Severo, nome que com frequência vem aos seus lábios. Quem trouxe a langra pro Brasil foi o avô de Luiz Severo, negro escravizado. De 1971 a 1999 a dança ficou adormecida, retornando pela mão de Geraldo, que hoje dança, ensaia, ensina, como que passando água de corgo de mãos em concha para outras em mãos em concha. Ele também confecciona as caixas, a zabumba (ela não a denomina assim, chama tudo de caixa), o adufe. Ele que vai atrás do cedro, corta e amolda. Ele ainda que dá os saltos, conforme se vê num dos vídeos, em que me aventurei na zabumba. Digo, caixa.

Enquanto fala, Dona Laís, doce, participa cm acréscimos e lembranças. 

 Reparem que uma das baquetas de Seu Geraldo é sabugo velho. Se isso não é telúrico














Alto Maranhão, Minas Gerais

Românticos serão românticos, com a importância que dão à imaginação, mas sempre me incomodou essa história de José Alencar ter escrito romance sobre gaúchos ambientado nos pampas sem jamais ter ido lá. Por menos, Carlos não fez (ou fez?) poema sobre a Bahia ("É preciso fazer um poema sobre a Bahia... / Mas eu nunca fui lá").

Então. Em Habacuque + 11, livro que escrevi para os profetas de Congonhas, escrevo na Abertura:

“o nome deste rio é Maranhão

em Minas coração de Minas se

te causa isso estranheza lembra

o nome desta pedra é sabão”

 

A ideia era justamente falar da estranheza de um rio mineiro com nome de um estado tão distante de Minas. E que essa estranheza já vinha no nome da pedra usada por Aleijadinho para esculpir suas estátuas: "pedra sabão", quase um oxímoro. Mas fiquei me sentindo meio José de Alencar porque embora eu tivesse visitado Congonhas, não tinha visto o tal rio. Que cito logo no primeiro verso do livro.


Talvez eu estivesse buscando pretexto para viajar, mas tenho paixão pelos distritos e de Congonhas eu já tivera experiência inesquecível em Lobo Leite (aqui). Aí descubro, com o Rafael Senra, por brutal coincidência congonhense e que emprestou sua linda música para o clipe do livro (aqui), que existe distrito de Congonhas que atende por Alto Maranhão. É preciso conhecer Alto Maranhão.


Enfim conheço. A igrejinha de Nossa Senhora da Ajuda, tão linda quanto a da Soledade em Lobo Leite, estava lá, no alto, toda branca de sol. Confesso que esperava mais casinhas velhas. Há duas ruínas, a da cadeia muito bem preservada ("ruína preservada", outro oxímoro?) e há Dona Laís e Seu Geraldo, que mantém viva a dança da langra e só esses dois já pagam toda a viagem. Isso fica para outra postagem.


Epa, e o Rio Maranhão? Não passa no distrito. Atravessamos ponte sobre ele no caminho Congonhas-Alto Maranhão. Então na volta peço ao motorista que esbarre ali rapidinho. Ele me adverte 'Cuidado'. Corro para a ponte em meio a carretas que passam zunindo furiosas. Enfim faço meu registro do Rio Maranhão.


Se te causa isso estranheza, lembra: o nome deste rio é Maranhão.