Sunday, May 31, 2020

Tarde de Maio


"Tarde de Maio" não me é apenas um dos poemas mais bonitos do Drummond, é das coisas mais lindas da vida, aquelas que justificam acordar cedo manhã de segunda, justificam existência inteira

Há já alguns anos meu amigo João Leite, que já tem lugar em meu panteão por ter me acompanhado em um jogo do Ferrim em Fortaleza (aqui), sim, esse amigo João Leite e eu lembramos do poema quando chega maio, quando chegam as tardes

As tardes que eu carrego comigo, o ano inteiro, exatamente como os primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior dos seus mortos. Sem tirar nem pôr


Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de
seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa…
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.

E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita sem máscaras?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.








Saturday, May 30, 2020

Galícia no País das Maravillas


Cheguei aos 20 anos sem namorada e muito menos filhos. Tinha um trabalho que amava e que levava muito a sério: era professor / recreador infantil no Tablado. Em termos de estudos, cursava Psicologia na UERJ, mas me concentrava mesmo era nas aulas de russo e, menos, nas de espanhol, ambos cursos coincidentemente situados na mesma Rua das Marrecas, das mais antigas do Rio.

Se a minha energia era mais direcionada para o russo, foi numa das paredes do Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica que vi pequeno pôster anunciando o I Curso de Língua e Cultura Galegas para Estranxeiros.

Larguei tudo - Psicologia, russo, Tablado, meus livros, minhas riquezas, minha vergonha -- e fui.

Numa das últimas aulas na Universidade de Santiago de Compostela, um dos ótimos professores tocou Milladoiro para nós, umas três músicas, sendo "Estroupelear" uma delas.

Foi aquela história da "Cachorra", do Pedro Dantas: nasceram rosas e o céu se rasgou para a maravilhosa aparição.

No último dia do curso perguntei ao professor como era o nome daquele grupo, "Milheiro?". Ele me corrigiu sorrindo, o suficiente para eu voar para as ruas de pedra de Santiago e, com meus contadinhos caraminguás, comprar vinil do Berro Seco e fita cassete do Galicia no Pais das Maravillas.

Isso tudo aconteceu em 2 de outubro de 1988, dia que Camila nascia e a quem eu encontraria pouco depois, em 2012.



Wednesday, May 13, 2020

Haicai enquanto a tarde kai


banho de balde
se ele se esbalda
não foi debalde

Monday, May 11, 2020

Igreja de São Bartolomeu : Pinturas



Foi lendo sobre as atividades sádicas do Grão-Vizir e Paxá Lala Mustafá (postagem anterior) que descobri que São Bartolomeu, um dos 12 apóstolos, foi esfolado no Daguestão, como atesta pintura bizarra no teto da Capela Sistina, em que ele segura na mão esquerda sua própria pele (!), enquanto na direita segura um alfange, o instrumento do seu suplício. Não é incomum que atributos dos santos sejam os instrumentos do suplício, bastando lembrar a própria cruz de Jesus.

Pois na vetusta Matriz de São Bartolomeu, no distrito homônimo de Ouro Preto, lá está ele na pintura do forro da nave segurando uma espada. Espada, aliás, que também aparece em pintura abaixo do coro.

Achei só uma coincidência que pouco depois de ter lido, no Chipre, sobre o santo eu estivesse numa igreja dedicada a ele em um distritinho mineiro. A igreja do sino de madeira.







Capela Sistina


Sunday, May 10, 2020

Por que não homenagear esfoladores?


Escrevi já sobre Famagusta aqui no blog: a princípio não queria conhecer, mas acabamos conhecendo o que se tornou o destaque de nossa viagem ao Chipre.

Na esplêndida mesquita medieval de Lala Mustafá Paxá, casavam-se reis e rainhas de Jerusalém, quando ela era catedral de São Nicolau. É muito mais interessante por fora do que por dentro. Como, aliás, a maioria dos castelos.

Agora um detalhe: o nome do Paxá Lala Mustafá (1500-1580) só foi efetivamente incorporado à designação da mesquita em 1954. Esse paxá grão-vizir (lembrado pelo Pink Floyd em música merecidamente obscura do Ummagumma) era de uma crueldade terrível, bastando lembrar seu gosto especial em esfolar as pessoas vivas, como fez com Marco Antonio Bragadin.

O que mais me surpreende é que tal homenagem seja de 1954! Depois de duas guerras mundiais recentes, depois da criação da ONU etc etc. Mais politicamente (literalmente) incorreto, impossível. Para um país, a Turquia, que se recusa a reconhecer o genocídio armênio, tristemente compreensível.

Homenagear torturadores rende dividendos. Recentemente elegeu presidente num país da América do Sul.

(Mas por que fiz esta postagem? Porque desejo escrever mais sobre São Bartolomeu, distrito de Ouro Preto)


Thursday, May 07, 2020

Dica Musical do Dia :: As Primeiras 50

This is Tim Buckley

No dia 11 de março deste ano retomei um pequeno projeto que a Camila tinha no facebook lá pros idos de 2012, quando nos conhecemos. Não sei quanto tempo durou, sei que eu adorava. Dica Musical do Dia é autoexplicativo, ela postava um link musical diariamente.

Decidi retomar acrescentando detalhe: para cada dica eu destacaria pelo menos um aspecto notável da música.

Minhas regras íntimas são que, claro, seja algo não apenas que eu goste muito, conheça razoavelmente bem e, quase sempre, possua em meios físicos.

Claro que procuro diversificar estilos e épocas mas o lance é postar sempre algo que me ocorra no momento. Procuro fugir ao óbvio, mas não é impossível que um dia poste "Hey Jude" e nem vou ficar caçando o lado B do compacto daquele grupo cipriota dos anos 50. Se postei Daguestão (dica 31) e polifonia da Sardenha (22), é porque amo isso. E acho que o mundo pode se tornar melhor ao conhecer.

Ah, determinei que seria por 365 dias, ininterruptamente. Falhei dois ou três dias, ninguém percebeu. Dá para fechar o ano sem repetir banda ou cantor? Claro, mas isso tampouco é regra. Dá para continuar por mais outro ano? Ora.

As 50 primeiras dicas:



1)      DOLPHINS – Tim Buckley, 1968
2)      WHEN YOUR PARENTS GO TO SLEEP – Kevin Ayers, 1973
3)      NORTHERN SKY – Nick Drake, 1970
4)      PARIS 1919 – John Cale, 1973
5)      MIRANDA – Michael Nyman, 1991
6)      CEGO ADERALDO – Egberto Gismonti , 1979
7)      3o movimento  1o concerto para violino – Prokofiev, 1923
8)      "Välkomme Hus", Turid, 1973
9)      "Taratá", Clementina de Jesus, 1973
10)   'Evening over Rooftops', Edgar Broughton Band, 1971
11)   "Grey Room", Damien Rice, 2006
12)   5o Movimento do 5o Quarteto de Cordas, Philip Glass, 1991
13)   Stomu Yamash'ta, "Crossing the Line", 1976
14)   "Favola", Reale Accademia di Musica, 1972
15)   "Tandem", Et Cetera, 1976
16)   "Lunar Sea", Camel, 1976
17)   "Watcher of the Skies", Genesis, 1973
18)   "Escape", Lorenz Dangel & Martin Pedersen, 2017
19)   "Red Glow", Patto, 1970
20)   "Hole in the Sky", Black Sabbath, 1975
21)   "Luz e Mistério", Beto Guedes, 1978
22)   "Milia vattu sa Trota", trad., interpretação de Tenores di Bitti, 3000 a.C.
23)   "Volo Magico", Claudio Rocchi, 1971
24)   "Girl with no Eyes", It's a Beautiful Day. 1969
25)   "Cat and the Rat", Oliver, 1974
26)   "Essas mocinhas de hoje", Cego Oliveira, 1992
27)   "Ozan", Adjágas, 2005
28)   "Sugar Man", Sixto Rodriguez, 1970
29)   "Gimel", Wim Mertens, 1997
30)   "Day is done", Peter, Paul & Mary, 1969
31)   "Dzikr", mulheres sufis do Daguestão, s.d.
32)   "Alone", Pell Mell, 1972
33)   "Luka", Suzanne Vega, 1987
34)   "The fortune teller", Gábor Szabó, 1968
35)   "Adagio Assai" do Concerto para Piano em Sol Maior, Ravel, 1931
36)   "Junk", Paul McCartney, 1970
37)   "Blankman cries again", High Tide, 1970
38)   "Destino", Madredeus, 1995
39)   "Hard Sun", Eddie Vedder, 2007
40)   "The Click Song", Miriam Makeba, 1979
41)   "The day I tried to live", Soundgarden, 1994
42)   "Insanity", Tygers of Pan Tang, 1980
43)   "A Cold Worried Lady", Triumvirat, 1976
44)   Andante do Concerto para Violino, Barber, 1939
45)   "Spiritus, Manes et Umbra", Dr. Z, 1971
46)   "Olhos nos olhos", Chico Buarque, 1976
47)   "God if I saw her now", Anthony Phillips, 1977
48)   "Flor maravilha", do Folclore, versão de Antônio Nóbrega com coro infantil, 1984
49)   "Idolen", Blåkulla, 1975
50)   "Let' em in", Wings, 1976

A de hoje, 52, será esta:



Tuesday, May 05, 2020

Oséias


Oséias ama uma mulher e ela
vai ter com outros homens, com quem goza
Pobre Oséias, seu gozo só virá
quando ele, poeta, faz metáfora
Assim Oséias crê assim espera
Profeta do amor, desconhece a ira
Todo seu ódio ele bota fora
-- tentativa de vida menos áspera --
E quando Oséias estiver mais triste
daquele triste de não ter jeito
daquele triste do soneto imperfeito
com seu amigo Amós vai ao boteco
os dois velhinhos pedem sempre o mesmo:
angu, feijão tropeiro e um bom torresmo

Sunday, May 03, 2020

Dos 200 países do mundo


Fazendo uma média entre a lista da ONU e a da FIFA, esta contabiliza 209 e aquela 193, há 200 países no mundo, dos quais conheço apenas 1/4.

200 países no mundo e eu tinha que nascer, às 13 horas daquela tarde friinha de junho em Laranjeiras, neste.

Sempre gostei do Brasil. Gosto criticamente, como creio ser a única maneira possível de se gostar, afinal, assim que gosto dos Beatles, do Vasco, da Camila, do meu pai, do Dante. E de mim mesmo, sendo que neste caso muitas vezes até desgosto.

Gosto criticamente, mas gosto, gosto imenso, amo. Ou não teria viajado tanto por aqui, sempre com sede de mais, sede demais.

Mas as conjunturas -- um presidente coprófilo racista, machista, misógino, bandido, irresponsável, assassino, defensor da tortura, fervorosamente defendido por legião de imbecis -- me trazem à mente trecho de Um Estranho em Goa, do Agualusa. Trata-se de diálogo entre o narrador e Lili:


"Se nos encontrarmos numa próxima encarnação – suspirou Lili –, e eu tiver uma aparência muito diferente, ainda assim saberás quem sou por causa destes sinais.

Disse-lhe que não gostaria que ela fosse diferente, nem pouco nem muito, achava-a perfeita assim.

Quanto a mim, qualquer coisa servia, poderia reencarnar numa abóbora ou num gafanhoto, contanto que não fosse outra vez em Angola."


Também eu voltaria como um gafanhoto.

Conquanto que não fosse no Brasil