Monday, December 28, 2020

Soneto de Cabo Roto para o Demo

Numa das minhas caminhadas matinais, encontrei enfiado num tronco de figueira pedaço de papel que, para minha surpresa, continha soneto, assinado por um certo Fuas Roupinho. Para minha enorme estupefação, era soneto de cabo roto, na melhor tradição cervantina.

O leitor logo perceberá que verso de cabo roto é aquele em que se omite a sílaba depois da tônica, não podendo, portanto, para que se dê o efeito de estranhamento da omissão, ser verso agudo.

Aliás, tão estranhado fiquei, que tive dúvidas acerca do tema exato de tão belo soneto e a quem ele estaria aludindo (ainda que no último verso ele confesse ser para o demo).

Segue:


Grande besta, inimigo da vaci~
Empenhado em tirar o país dos tri~
Estoca ozônio, armas e cloroqui~
Contra a PF blinda os seus fi~
 
Aos 33 foi logo aposenta~
o ex-capitão que nem pra isso ser~
Fez muito dindim como deputa~
Por nadas feitos com empenho e ver~
 
Juízo de camarão, boca de esgo~
Quando o ouço falar, logo vomi~
Mas lobotomizados mugem "Mi~" 

Aqui se finda este troço esquisi~
Com flato com desprezo e com arro~
Dedica-se ao demo este cabo ro~


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Como são estes, contudo, tempos de perseguição, não quer Fuas Roupinho complicações para si, de modo que enfiou na árvore seguinte, desta feita uma fedorenta chichá, o mesmo soneto sem as esquisitas omissões. E agora, creio, poderá mesmo figurar em antologias com o selo de qualidade do Escola Sem Partido.


Grande besta, inimigo da vacilação
Empenhado em tirar o país dos tristes
Estoca ozônio, armas e cloroquita
Contra a PF blinda os seus fidalgos
 
Aos 33 foi logo aposentando
o ex-capitão que nem pra isso serpenteia
Fez muito dindim como deputante
Por nadas feitos com empenho e versos
 
Juízo de camarão, boca de esgotado
Quando o ouço falar, logo vou-me
Mas lobotomizados mugem "Minas!" 

Aqui se finda este troço esquisitice
Com flato com desprezo e com arroz
Dedica-se ao demo este cabo romântico
 
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PS: A precaução de Fuas não apenas procede como segue os célebres versos de cabo roto no prefácio de Dom Quixote:

Advierte que es desati-
siendo de vidrio el teja-,
tomar piedras en la ma-
para tirar al veci-.

 

Wednesday, December 23, 2020

Dante, aulas remotas, eu

Quando começou essa história de aulas remotas, pensei logo 'Não vou conseguir'. Entravam aí, claro, insegurança e contumaz desacerto com internet. Entrava aí minha preocupação com o Dante, eu tendo que estar com ele, ele atrás de mim, eu me lembrava do Robert Kelly dando entrevista para a BBC: entra a filha dançando, entra o bebê no andador, entra a mãe desesperada atrás, puxando filha filho andador e porta. Foi engraçado mas preferi ver a resposta a isso: se fosse mulher, ela iria sentar a criança no colo, dar de mamar se necessário e continuar a entrevista.

Nela me inspirei quando anuí: partiu, mas vai ser como der, como for possível, tenho filho autista em casa e, como disse Thiago Queiroz, tão acertadamente, "não são os filhos que invadem o trabalho, foi o trabalho que invadiu a vida de filhos e família".

Quando o filho é autista, a parada complica, quem disser que é a mesma coisa leva sopapo. Virtual.

Dei um curso sobre Pink Floyd para os alunos do 1o ano que ia das 7 ás 7:50. Estive à frente de uma roda de conversa chamada "(Precisamos falar sobre) Autismo na Quarentena", que ia das 7:50 às 8:40. Éramos só nós dois. E tantas outras aulas e orientações. Minha tranquilidade é ouvir o ranger da rede, ao menos sei onde ele está e que está bem. Os alunos também ouvem o ranger e sabem onde está o Dante. Num dia de roda de conversa, ele estava muito quieto, o que não é bom sinal. Quando terminei, vi que ele arrastara a poltrona para o meio da sala, bloqueara a porta da frente com o sofá e levara as quatro cadeiras, grandes, para a cozinha. Estava quieto e feliz. Sorria. Suspirei. Tá, Dante, você quer mais chocolate? 

Hoje nos acostumamos um pouco. Ele às vezes vem e se senta no meu colo. Outras vezes pede beijos e shantalas. E pede sempre que eu não feche a porta, no que o respeito totalmente.

Monday, December 21, 2020

Multiple Twelve

Quando contei para os meus 'pais americanos' que Dante em breve faria 12 anos e que eu fizera para ele poema apenas com rimas em 'oze', eles prontamente me responderam assim

 

Ellen:

May Dante stay on his toes
Wherever he goes
And strike a brave pose
Against any foes
Presents with bows
And even a rose
Can brighten his lows
And dispell any woes

 

Dave:

Ellen and I wish him a life with very few woes, wherever he goes, and not many lows, and presents with bows.

And when he throws, may he hit 'em on the nose.
 
Tenho é muito orgulho do Dave e da Ellen, com quem morei em Chicago em 1986-1987. Hoje eles moram em Wisconsin, numa casa ao lado do lago, em Eagle River, ainda mais ao norte de Chicago. Disseram-me que se trump fosse reeleito, subiriam mais um pouco e iriam morar no Canadá.
 
Tenho muito orgulho. Felizmente podem continuar onde estão, na casa linda ao lado do lago onde à noite se escuta o canto de um pato de olhos muito vermelhos que só há por lá, o loon. 

"Multiple Twelve", Wim Mertens ::


Saturday, December 19, 2020

12



 

12
 
É teimoso gaiato cheio de pose 
Quando zangado já não há quem ouse
confrontá-lo, pois às vezes é dose
pra leão pra bisão se fica azedo
(e isso às vezes começa bem bem cedo)
but I love him dearly I'm one of those
who can but love even if I can't doze
off in my siesta : somos sempre dois e
o mundo o vasto mundo pouco doce
nem sempre entende. No poema pouse
amor sem fim plural metamorfose
Que o menino mais lindo chega aos doze 


Da série "Se explicar estraga?" ::

Para os 12 anos do Dante, poema de 12 versos, todos eles rimando com "doze", precisando recorrer ao inglês e a inversões silábicas: doze > zedo

O correto seria, creio, que os versos fossem alexandrinos, é o que se dá por aí, mas isso não sei fazer


Friday, December 18, 2020

 


 



 

 Em postagem de 2015 expliquei já:

No final de dezembro de 2012 a situação era a seguinte : no dia 17 (uma segunda-feira) era aniversário da minha mãe. No dia 19 era aniversário do Dante (4 anos!). No dia 20 eu lançaria não um, mas dois livros de poesia, o Caderno de Sonetos e o Voo sem Pássaro! E o dia 21 era sexta-feira. E depois vinha o Natal, essas coisas.

Releiam, por favor. Perceberam que eu tinha coisas pra fazer durante toda a semana, exceto na terça-feira, dia 18? Isso me encheu de pânico de tal modo que.

Bom, pensei, e se, e se eu pedisse aquela menina bonita em namoro? Aquela baiana que mora em São Paulo e que está em Londres e com quem converso (internet e telefone) religiosamente todos os dias há pouco mais de três meses?

Não tínhamos nos visto ainda pessoalmente, mas pedi. Ela aceitou.


Cinco anos se passaram, nem senti. E este ano, 8, 8 na horizontal

Neste dia 18 completamos 8 anos juntos, neste dia 18 Macca lança seu 18o álbum

felizes aqui

travessia



Saturday, November 28, 2020

Amor às cigarras: de pai pra filho, de pai pra filho

Com sua pedagogia muito própria (aqui), meu pai me ensinou amor às cigarras, por que sou grato, que é dos grandes que carrego. E feliz agora por conseguir transmiti-lo ao Dante, a comprovação veio hoje. Naquela hora preferida delas, uma gritou, agarrada ao flamboyant, sua cabeça de noiva, as asas como véu, translúcidas. Dante estava de pé no corredor e apontou para o ouvido, sem incômodo. Perguntei O que é, Dante? Ele sorriu e apertou o nariz, seu jeito de dizer sol (e piscina)

 A cigarra atrelas as patas é no nosso coração.

E com Adélia, de novo

Thursday, November 19, 2020

Gruta de Capri

 Estrategicamente situada na Miguel de Frias, quase dando para dizer que Praia de Icaraí, a Gruta de Capri foi por muitos anos o principal vértice do triângulo etílico-gastronômico de que também faziam parte o Chalé (bom para empadas e chope em pé) e o Ponto Jovem (bom para sanduíches). A Gruta era boa para as massas e para a pizza, que os habituês pediam com o molho da casa.

Muitos já assistiram a filmes e a shows e concertos na UFF -- confessai! -- mais pensando na pizza que viria depois. Muitos mesmo às vezes só iam ao Maracanã para poder, na volta, descer ali de 703 e pedir a napolitana. Com o molho da casa.

Havia dois ambientes e se o salão ao lado era mais reservado e tinha o garçom mais simpático, o principal nos brindava com o soberbo painel azulejar do Angelo Toledano, sobre o qual já escrevi aqui. Para que televisão se podíamos repousar ali nossas retinas tão fatigadas? O imenso painel era como as pinturas de Nilton Bravo nos botequins: em meio a uma e outra garfada, um e outro gole, o devaneio por entre ipês e castelos e, aqui, pela atmosfera onírica de estalactites e estalagmites. Para que televisão?

A Gruta fechou. Não é pequeno o risco de o imóvel ser vendido ou alugado para mais uma drogaria que irá tapá-lo com as estantes de Rivotril ou simplesmente cobri-lo com mãos de tinta. Seu tombamento, portanto, é tão urgente quanto imperioso.


Tuesday, November 10, 2020

'Mu', Riccardo Cocciante

 

Não, juro que não é provocação ao gado bolsonarista, já que não uso o blog para isto e deixo postagens políticas para o face e o insta. Chama-se Mu o trabalho de Riccardo Cocciante lançado em 1972, revelador, se ainda fosse necessário prová-lo, dos ventos progressivos que sopravam no Bel Paese na primeira metade dos anos 70. Isto é, o cantautore nascido no Vietnã (e ao contrário de um Nick Drake nascido na Birmânia e um Fred Mercury no Zanzibar, por lá morou até os 13 anos) não era de fatura progressiva, mas surfou na onda, assim como I Giganti e Dik Dik.

E surfou muito bem, num disco ótimo. Creio que não será impossível torcer o nariz para certa impostação pop ou algum melodrama (presente em outros discos do movimento), mas não ser tocado pela beleza de "Coltivò tutte le Valli" e "Era Mattino sul Mondo", com suas doses generosas de mellotron, será revelador de cinismo

Não se tocar com a tecladeira (ele próprio, o Riccardo, toca piano e moog e temos o Paolo Rustichelli, antes de lançar o Opera Prima) será indício de surdez.
 
Esses são os destaques, num disco que de resto lembra um Famiglia degli  Ortega ou um Blocco Mentale, aquele clima de Deus e cannabis.
 
Não figura no 50 Album per Scoprire il Rock Progressivo Italiano degli Anni '70, de Riccardo Storti e Donato Zoppo. Nem nos 100 álbuns do Rock Progressivo Italiano, do Andrea Parentin ou na seção italiana do Prog 40, mas recebe elogios do Paolo Barotto em The Return of Italian Pop e foram estes que, há muitos anos, me fizeram correr atrás do CD.
 
 E ainda temos o maior destaque de todos: "Corpo di Creta", epifania grandiosa, que encerra o disco de forma sublime, ombreando com o quê de melhor se fez no rock progressivo italiano.
 

 

Saturday, October 24, 2020

1970 :: Quatro Altos Momentos do Sax no Rock Progressivo

Que se fazia rock progressivo sublime na virada da década de 60 todos lo saben, mas que se possa, assim sem grandes pesquisas, fazer compilação de músicas maravilhosas onde o saxofone tem protagonismo, isso até eu me espantei.

1) "Men" - Mad Curry : tenso e maligno, com o baixo e o piano

2) "Big Brother is Watching You" - Skin Alley : para além do ritmo, um alto voo na seção do meio

3) "Killer" - Van der Graaf Generator : porventura o riff mais memorável (e matador); mais uma vez sinistro; solo espantoso (dois saxes ao mesmo tempo, Mr. David Jackson?)

4) "Raid" - Audience. Primus inter pares

Eu disse 'quatro altos momentos'? Ora, não apenas alto, mas também barítono, tenor e sopranino




 

Café e Bar Primazia, Ramos

Tímida e cautelosamente, nestes tempos ainda pandêmicos, fiz pequeno giro etnográfico em Ramos, já com objetivo preciso: Café e Bar Primazia, na Rua Operário Fortes, onde, segundo informação do blogue O Rio que o Rio não vê, haveria belas pinturas.

Com efeito, não fosse a ótima dica, nunca teria chegado a elas, uma vez que o "café e bar" passou por uma reforma descaracterizadora para transformar-se num restaurante a quilo anódino. Ou seja, numa andança típica -- e já fiz várias pelo bairro de Ramos -- eu jamais teria entrado.

Critiquei a reforma, mas fique o sincero elogio: ao menos mantiveram as pinturas: arte naïf em estado bruto, com imagens bucólicas e nostálgicas: a moça e seu cântaro, o bom gaúcho, sereias, naus portuguesas, ninfas e crianças.

Vê-se em dois lugares a assinatura de um Castelão. Segundo o blogue citado, trata-se do artista português Cesar Augusto Castelão, nascido em 1922. Julgo enxergar o número 70 debaixo de uma delas.

Pela quantidade, lembram as dos Façanha, no hoje fechado Tâmega, bem como as do Souto, em Quintino.

Um verdadeiro patrimônio do subúrbio que, a exemplo de alguns Nilton Bravos, deveria ser tombado e  preservado a todo custo












Friday, October 16, 2020

Rock Progressivo Italiano :: 10 Músicas Instrumentais


Já escrevi bastante por aqui sobre a voz no rock progressivo italiano, paixão da vida e para além. Exemplos estão aqui, aqui, aqui e aqui. Então há algum tempo que penso em lembrar algumas músicas instrumentais lindas do rock progressivo italiano.

É lista sem a menor pretensão de completude. Aliás, toda lista chama mais atenção pelas lacunas

Em ordem alfabética ::

1) "Croma", Alphataurus, 1973

2) "Tilt", Arti + Mestieri, 1974

3) "Preludio", Luciano Basso, 1976

4) "Campane",  I Califfi, 1973

5) "V Tempo", Campo di Marte, 1973

6) "Risveglio", Enzo Capuano, 1975

7) "Tarantella", Le Mani, 1976

8) "Ritorno sl Nulla", Le Orme, 1973

9) "Il trionfo dell'egoismo, della violenza, della presunzione e dell'indifferenza", Il Paese dei Balocchi, 1972

10) "Medio Oriente 249000 Tutto Compreso / Canto di Lavoro" - Il Volo, 1975













Sunday, October 11, 2020

A Pequena Rapsódia da Abelha



Le Orme é uma banda tão maravilhosa que antes que o movimento unplugged se popularizasse com a MTV (e com alguns ótimos resultados, como o do 10,000 Maniacs), eles já haviam se tornado acústicos. Por uma fase

Para indicar a mudança, passaram a assinar Orme, apenas

Foram somente dois discos, Florian, de 79, e este, Piccola Rapsodia Dell'ape, do ano seguinte.

Foi meu primeiro Le Orme (ou Orme), comprado em 1984, graças aos anúncios do jornal Balcão. Fui na casa do sujeito e ele me mostrou sua coleção de discos: apenas a Elvis Presley, algumas centenas

Gosto tanto deste disco que varei anos dizendo meu restaurante se chamaria 'Piccola Rapsodia dell' Ape', Piccola para os íntimos

Gosto tanto desta música que usei o verso 'dei fuochi accesi sulla collina' como epígrafe do meu livro de sonetos para a Pampi. Embora, ainda na fase do flerte (virtual), ela já tivesse declarado 'Pampi morena'. =)

Gosto em especial do som que se ouve, por 45 segundos, a partir de 1'13''. E depois novamente a partir de 2'33''. Como que gotas pingando. Nunca descobri como conseguiram essa sonoridade, que instrumento seria.

Meu amigo Rodrigo Russano acabou de esclarecer: "aro da caixa, batendo em angulações diferentes". Continua: "Existe outra possibilidade: batendo com os dedos na caixa de um violão ou outro instrumento acústico de cordas". E conclui: "mas  tudo é possível. De repente eles conseguem de outra maneira"

Enfim. Mistério que a vida me emprestou


Saturday, October 10, 2020

Uncle Walt, again


No dia 22 de setembro recebo whatsapp do meu pai pedindo que eu lhe traduza "I sit and look out upon all the sufferings of the world", do Whitman. Depois da contumaz procrastinação de dois dias, traduzo numa sentada só, não que fosse coisa mais simples, mas é que são apenas dez versos.

Tenho lá minhas desconfianças acerca do motivo do pedido do meu pai. Ele tem horror quando me ponho a falar de política. Mas se o poema estava em inglês... como ele sabia?

Em troca de mensagens (já lhe mandei a tradução), ele diz "Penso que em certas situações na vida nada mais resta do que observar, ouvir e silenciar", ao que replico "Sim, entendo. Walt Whitman acreditava que devemos dar voz àqueles que não têm. Por isso escreveu o poema". Ele responde imediatamente "Mais interessado fiquei no livro".

Uma paz se abate sobre a noite. Compro o Folhas da Relva e mando entregar lá em Copacabana.

 

I SIT and look out upon all the sorrows of the world, and upon all oppression and shame;

 

I hear secret convulsive sobs from young men, at anguish with themselves, remorseful after deeds done;

 

I see, in low life, the mother misused by her children, dying, neglected, gaunt, desperate;

 

I see the wife misused by her husband—I see the treacherous seducer of young women;

 

I mark the ranklings of jealousy and unrequited love, attempted to be hid—I see these sights on the earth;

         

I see the workings of battle, pestilence, tyranny—I see martyrs and prisoners;

 

I observe a famine at sea—I observe the sailors casting lots who shall be kill’d, to preserve the lives of the rest;

 

I observe the slights and degradations cast by arrogant persons upon laborers, the poor, and upon negroes, and the like;

 

All these—All the meanness and agony without end, I sitting, look out upon,

 

See, hear, and am silent.


 

Sento e vejo as tristezas do mundo, toda opressão e vergonha

Ouço soluços secretos e convulsivos dos jovens, angustiados consigo mesmos, cheios de remorsos

Vejo a mãe maltratada pelos filhos, morrendo, abandonada, descarnada, desesperada

Vejo nos baixios a esposa maltratada pelo marido – Vejo o traiçoeiro sedutor de jovens

Percebo as úlceras do ciúme e do amor não-correspondido, que tentam se ocultar – Vejo isso sobre a terra

Vejo os resultados da guerra, peste e tirania – Vejo mártires e prisioneiros;

Observo uma fome no mar – Vejo os marinheiros lançando alguns à morte, para preservar as vidas dos demais

Observo as durezas e degradações no trato dos arrogantes com os empregados, os pobres, os negros e semelhantes

Tudo isso – toda a maldade e agonia infinitas, eu, aqui sentado, vejo

Observo, ouço e me quedo em silêncio.

 

 

Sunday, September 27, 2020

Adolescência Autista ou A Invenção do Diabo

 


Foi Eustacia Cutler, a mãe de Temple Grandin, quem disse 'A adolescência já é dificílima para qualquer criança, mas a adolescência autista é invenção do diabo'

Cito com sorriso nos lábios, ainda mais vivendo nesta teocracia fundamentalista insuportável em que se transformou o Brasil.

Há exato um ano e um mês eu já descrevera em haikai :

o pai se apavora
a pentelheira do Dante
lentamente aflora
 
Um sorriso nos lábios, sim, mas esse adolescer já me oferece seu grão de angústia na mão esquerda, quando, por exemplo, tem suas crises de ansiedade amplificadas pela masturbação. Sigh, não deveria ser o contrário? A outra, a outra mão, continua acariciando os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura / e o mistério que além faz os seres preciosos
 
Tudo isso vem a propósito de Um Sopro no Coração, de Malle, assistido ontem e de onde fiz os stills
 



Tuesday, September 22, 2020

De cantos guturais, leite de égua, físicos e rock progressivo

A ser feito antes de morrer (de preferência) : assistir a um concerto do Michael Nyman. Visitar Tuva. Explico.

Conheci o Khoomei, o canto diafônico, o throat-singing dos Tuva, há quase trinta anos, na casa de um aluno particular que trouxera CD de Lisboa. Fiquei mesmerizado. Ele me emprestou o CD, o mesmo que tenho até hoje (quando fiz menção de devolver, ele, sabedor de minha paixão, renovou o empréstimo. Ao menos é esta a minha versão).

Richard Feynman, notável físico norte-americano, sentiu e cultivou paixão semelhante por Tuva, parece que nele desperta através de sua coleção de selos. Fez da ida à Tuva tal objetivo de vida que sobre eles (físico, objetivo e Tuva) escreveu-se Tuva or Bust -- Richard Feynman's last journey. Não será demais lembrar que o emérito físico esteve no Brasil por duas vezes, nas décadas de 50 e 60, e tocou pandeiro nos Farçantes de Copacabana (sim, com cedilha), quiçá preparando-se para a grande viagem de sua vida -- Tuva.

Se eu tivesse a chance de assistir a um recital de canto diafônico tuva numa sala de concertos em qualquer lugar do mundo, iria correndo, claro. Mas a vontade mesmo é de ouvi-lo in loco, de preferência vindo de amadores, animados que estaríamos depois de uns goles de araga, a vodka local feita com leite de égua.

 


No álbum The Rainmaker (2001), os Flower Kings usam o Khoomei em dois momentos: na música inicial "Last Minute on Earth" e no final de "Thru de Walls".



Sunday, September 20, 2020

Sopa de Feijão Branco com Camarão e Sálvia

Com o duplo propósito de tirar o feijão do papel de coadjuvante e pensá-lo em combinações pouco usuais -- propósitos que se entrelaçam -- fizemos esta semana duas receitas diabólicas, inspiradas pelo livro lindo Feijão, da Coleção Aromas e Sabores da Boa Lembrança.

A primeira foi um feijão branco com filé de porco. Até aí não tem novidade, afinal não existe feijoada? Mas com muito, muito tomate. Eu nunca tinha comido feijão assim com tomate. Ficou delicioso.

A segunda, um pouquinho mais ousada, foi uma sopa de feijão branco com camarão e sálvia. A noite estava quente, até Camila suou. Mas não conseguíamos parar de comer.

Sálvia vem do latim salvare e por muitos séculos era a panaceia por excelência. No século XII o frontão da Escola de Medicina de Salerno exibia: "Como pode morrer aquele que tem sálvia em seu jardim?", que já adaptamos para 'Como pode entristecer aquele que toma sopa de feijão, camarão e sálvia?'

Aliás, minha Witzelsucht deitou e rolou com a sálvia, mas deixarei aqui um registro apenas:

 Mando receita de sopa 

De feijão branco, camarão e sálvia

Se  não gostar, delete-a 

Se gostar, salve-a.

Não é um poema, é meramente trocadilho. Ao menos tenho consciência disso, ao contrário dos poetastros hodiernos