Thursday, November 04, 2021

A menina que repetia palavrões baixinho, para aprendê-los

No trigésimo capítulo da primeira parte de Ressurreição, o narrador nos descreve a cela para qual retorna Máslova, que acabou de ser julgada e sentenciada a quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria.

 A cela em que Máslova ficava era um cômodo comprido, de nove archin de comprimento e sete de largura, com duas janelas, uma estufazinha proeminente com paredes esfoladas e beliches feitos de tábuas rachadas pela secura, que ocupavam dois terços do espaço da cela. No meio, em frente à porta, havia um ícone escuro com uma velinha de cera colada e com um empoeirado buquê de sempre-vivas embaixo. Junto à porta, à esquerda, havia um lugar enegrecido no chão, onde ficava uma tina fedorenta. Tinham acabado de fazer a chamada e as mulheres já estavam trancafiadas para a noite.

Ao todo, os residentes na cela eram quinze: doze mulheres e três crianças.

Segue-se a caracterização das prisioneiras, magistral e dura, dureza só atenuada pela presença das crianças. É justamente uma dessas crianças que nos fornece a parte mais bonita, exemplo perfeito do conceito de "detalhe sensível".

Quatro das doze mulheres estão de pé à janela, interagindo aos gritos com os prisioneiros no pátio. E agora:

Sua filha, uma menininha de sete anos, de cabelos brancos e desgrenhados, só com uma pequena camisa e mais nada, estava ao lado da ruiva, segurava-a pela saia com a mãozinha magra e miúda,e com os olhos parados, escutava atentamente as palavras obscenas que as mulheres trocavam com os prisioneiros e as repetia num sussurro, como que para aprender.

 

O grifo acima é meu, e repito: "escutava atentamente as palavras obscenas que as mulheres trocavam com os prisioneiros e as repetia num sussurro, como que para aprender."

Muitos escritores calibrados podem descrever com desembaraço uma cela de prisão e narrar a interação entre algumas de suas ocupantes e prisioneiros pela janela. Só um grande escritor irá se deter nesse detalhe sensível -- da criança que repete palavrões baixinho para memorizá-los --, revelando excepcional poder de observação, utilizado aqui para humanizar ambiente tão hostil.

Sem falar que é um detalhe extremamente cinematográfico.

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