Monday, February 28, 2022

De vendedores de bilhetes de loteria e peixeiros

Meu pai só comprava bilhete de loteria com um vendedor (de bilhetes de loteria) que ficava ali na esquina da 1o de Março com a Rua Larga de São Joaquim

Eu achava engraçada essa fidelização assim. O que esse vendedor fez pra cativar meu pai? Provavelmente nada

Na mesma época, eu tinha meus 13 anos, eu estava na casa de um amigo que saiu pra cortar o cabelo. A gente era tão amigo que ele podia sair pra cortar o cabelo e eu continuar em sua casa. Voltou em dez minutos e todos 'Ué?' e ele "Meu barbeiro não estava lá". Logo liguei as coisas

 E eu não tinha isso, só fui ter muitos anos depois, justo com o Levi, um barbeiro em Icaraí que escrevia cordel (escrevi aqui)

Mais recentemente tornei-me fiel ao peixeiro da feira de sábado do Grajaú, na Duquesa de Bragança. De sábado, porque a famosa é a da sexta. Só compro peixe e camarão com ele. Às vezes polvo e lula

Ontem não foi diferente e na hora de pagar, sua filha, que cuida dos pagamentos, perguntou 'Hoje veio sem seu ajudante?' Sorri feliz "Você acertou o nome dele: Dante". Sorrimos

Um gesto tão pequeno, né? Pra gente faz diferença: ela perguntou pelo menino de caracóis na cabeça, aliás quase sempre agitado quando está lá, ameaçando bater a cabeça no cherne e jogar os filezinhos de viola no chão

Monday, February 21, 2022

Uma coisa puxa outra

Uma coisa puxa outra que puxa a outra e outra

Perdi meu livro do Vikram Seth (aqui). Perdi, apenas perdi, dentro de casa. Li bastante ontem pela manhã, já entrando nos capítulos finais e hoje procurei-o high and low e nada. Chances de que o Dante o tenha enfiado em algum lugar, mas já olhei cantinhos do sofá, embaixo da cama, vão da poltrona, interfonei pros porteiros, liguei pra polícia e nada

Uma tristeza querer ler e não poder. Para compensar, para ficar perto, peguei o grande livro Le Ton beau de Marot, de Douglas Hofstander, que tem dois capítulos inteiros dedicados ao livro do Seth. E aí descubro que aos 16 anos ele ganhou um dos melhores presentes da sua vida: O Cravo Bem-Temperado, do Bach, por Glenn Gould

E aí me lembro que eu tinha esse disco quando morei em Chicago! Eu achava esquisito o Glenn murmurando enquanto tocava. É esquisito, e só pode ser assim para ser ele. Lembro que lá no início, quando Camila e eu nos enfurnávamos nas cidadezinhas da Mantiqueira, a gente ouvia. E eu lia sobre o Glenn. Tanto que um dia ela me recebeu em seu quarto na USP e preparou lanchinho. Com, segundo ela, queijo Goulda.

Este vídeo é sensacional



fecha as janelas amor deixa apenas
a luz coada das treliças verdes
me vem de blusa branca os cabelos
o rio negro e volumoso que
não há conter :: o rio vasto e negro e sonho
te escorrem pelas costas infinitos
perto da cama larga os teus chinelos
ao lado dos meus deixa que namorem
e se segredem coisas dos seus donos
agora vem e deita e fecha os olhos
para que no escuro te venham cores
que como nunca se repetirá
deita ao lado :: eu te dedilho o clitóris
e o Glenn Gould : sempre ele : dedilha Bach

Thursday, February 17, 2022

Os Sonetos de Seth. E o meu

 

Na pequena mesa da sala livros recém-chegados esperam sua sorte: colhidos para a leitura ou para a estante (o que não impediria leitura posterior, claro). The Golden Gate, de Vikram Seth, estava ali há alguns meses, a gente se entreolhando, ele bem vendo que outros passavam-lhe a frente, recém-chegados ou não.

 Há poucos dias comecei a lê-lo e aconteceu o que suspeitava: achei genial. Estou apenas chegando à metade mas para um amante de sonetos como eu, uma narrativa escrita toda ela em sonetos Pushkin (ou estrofes Onegin, de vez que foi como o poeta russo escreveu seu Eugene Onegin, inaugurando a forma) dificilmente não iria me cativar. São 590 sonetos para ser preciso, no invariável esquema monostrófico ABABCCDDEFFEGG, sempre em tetrâmetros iâmbicos, isto é, versos octossílabos. Bem, até poderia dar errado, o domínio de uma técnica não resulta necessariamente em obra de arte, mas o humor de Seth (wit), seu vocabulário coloquial e também refinado (diction), seu conhecimento de mundo resultam em sonetos deliciosos, que invariavelmente termino de ler com sorriso, quando não aberto riso. E depois de ler dois, quinze, trinta, a gente fica com os tetrâmetros na cabeça (fraca-forte / fraca-forte / fraca-forte / fraca-forte) e tem vontade de só falar assim, até na hora de pedir um chopp ('GarÇOM queRIdo, TRAZ um CHOPP').

Abaixo dois exemplo de Seth, que narram o momento em que John tem seu primeiro encontro com uma pretendente (sonetos 2.36 e 2.37). Em seguida, soneto que escrevi na varanda, com os tetrâmetros martelando na cabeça. Não acho muito fácil escrever em tetrâmetros, prefiro os decassílabos, e tampouco acho o português muito apto para eles, de vez que tem palavras maiores que o inglês.

Bem representativos esses exemplos do Seth: coloquiais, divertidos, mas com um rigor espartano por detrás. Amei a rima "I'm / time".

 

"She's lovely," John thinks, almost staring.

They shake hands. John's heart gives a lurch.

"Handsome, all right, and what he's wearing

Suggests he's just returned from church...

Sound, solid, practical, and active,"

Thinks Liz, "I find him quite attractive.

Perhaps...." All this has been inferred

Before the first substantive word

Has passed between the two. John orders

A croissant and espresso; she

A sponge cake and a cup of tea.

They sit, but do not breach the borders

Of discourse till, at the same time,

They each break silence with, "Well, I'm --"

 

 

Both stop, confused. Both start together:

"I'm sorry --" Each again stops dead.

They laugh. "It hardly matters whether

You speak or I," says John: "I said,

Or meant to say -- I'm glad we're meeting."

Liz quietly smiles, without completing

What she began. "Not fair," says John.

"Come clean. What was it now? Come on:

One confidence deserves another."

"No need," says Liz. "You've said what I

Would have admitted in reply."

They look, half smiling, at each other,

Half puzzled too, as if to say,

"I don't know why I feel this way."



O meu soneto:


Se todo dia tem suas horas

(ao todo 24, não?)

é a hora do sol ir embora

que mora no meu coração

se rola cigarra, aí ferrou

melancolicamente eu vou

lembrando as coisas que perdi

a cigarrinha cicia em si

em lá, em sol e aí, né, quem

aguenta? para não chorar

retorno ao velho patamar:

Folheio o Seth, abro uma Heineken

e minha dor tão má, em cacos,

Escala o Morro dos Macacos

 

Da série 'se explicar estraga?': claro que há ambiguidade em "a cigarrinha cicia em si": em si mesma e na nota si. Também aliteração e onomatopeia: a cigarinha cicia em si . Mas o mais legal é que como o eu-lírico se põe a recordar o passado, a cigarra canta de trás pra frente: si-lá-sol. A nota sol a lembrar também o sol que se põe. Já que falamos em notas, ao fim a dor escala o morro. E ainda a rima: aí, né, quem / Heineken.

Sunday, February 13, 2022

Só pode levantar com o dia claro

Há todo o ritual para dormir, se já para neurotípicos, imagina para autistas com seu pendor para rituais e repetições. Na hora mesmo em que deita Dante pede um copo d'água. Quase nunca tem sede e muitas vezes mal bebe gole, é só mesmo para retardar, tanto quanto possível, a hora de dormir. Mas às vezes bebe tudo e pede mais, o que já me irritou um pouco, em momentos de exaustão. Mas tá. Depois bate na cama ao seu lado, forma de pedir que eu me deite ali. Sempre o faço e o beijo, evitando dizer coisas como "Amanhã a gente vai isso ou aquilo", o que geraria ansiedade e um menino acordado ainda de madrugada. E é por isso então que não só não faço qualquer referência ao futuro como digo "Só pode levantar com o dia claro, tá? Não pode levantar se estiver escuro", eu ainda traumatizado com seus acordares às 4, 4:30 da manhã.

Assim fizemos muitas vezes, mas fiquei com a pulga atrás da orelha: e se ele sentisse qualquer mal-estar durante a noite? Um sonho ruim que fosse? Um ataque de insônia? Se lembrasse de minhas palavras, iria se sentir culpado em me procurar, então passei a dizer "Só pode levantar com o dia claro, tá? Não pode levantar se estiver escuro. Mas se você sentir qualquer coisa e precisar falar com o papai, pode me chamar". Acho que ficou com contornos de piada, como a da lápide do comerciante recém-falecido 'Fulano de tal, grande pai e marido, benfeitor da comunidade etc etc e tal. Mas sua loja continua funcionando na Rua da Assembleia, número 27, sobreloja'. 

Também ele achou que ficou engraçado, de modo que tão logo termino a frase completa caímos na risada. Ontem foi assim. E dormimos de coração aquecido

No quarto ao lado tocava "Mother's Nature Son", com o Gryphon




Wednesday, February 02, 2022

Ange :: Paralém do Delírio


Não há como ser lado B aqui (bien, já estamos no lado B) : minhas duas bandas preferidas da cena progressiva francesa são as reconhecidamente maiores da dita cena: Ange e Magma. Por óbvio que é sempre uma questão de gosto, e vou adorar quem prefira Mona Lisa ou Wapassou, mas em termos de importância, produção e intensidade o lugar de proeminência que ocupam é tanto aceito quanto merecido. Quase como, em analogia, reconhecer a Santíssima Trindade PFM, Banco e Le Orme na mais rica cena italiana Se bem que aí a minha banda preferida é o Museo Rosenbach. Mas não compliquemos, falemos do Ange.

A postagem que sonhei escrever sobre eles -- uma resenha pormenorizada sobre Au-delà du délire, um dos discos da minha vida -- nunca saiu, mas algo das noites varadas empurrando o carrinho do insone Dante ao som do Ange registrou-se aqui.

Agora há pouco estávamos na Suíça e fomos passar dois dias em Lyon. Em meio aos bouchons maravilhosos, aos pralulines de sonho e aos traboules e lembranças de Juninho, uma única loja de discos na cidade velha. Onde me esperava a edição original do Au-delà du délire. Como me senti? Au-delà du délire.