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Jabuti no Lixo
Com o texto abaixo inauguro seção / tag aqui no blog: Convidado, em que publicarei contos, crõnicas, poemas de colegas e amigos, às vezes pouco mais ou menos que isso, blogueiros ou não.
Este texto é da Dulcinéa Sotnas, que conheci na fila do show do Bacamarte.
Ou foi em viagem que fiz a La Mancha?
Jabuti no lixo
Se perguntar a qualquer pessoa que tem um jabuti de estimação, dirá que tem uma tartaruga.
Por isso andei pensando que podia ser culpa da fábula. A tartaruga é
que é lenta; Do jabuti...Ninguém sabe. Não se escreve sobre jabuti.
Ele não é personagem de coisa nenhuma. Parece que nunca o viram, e se
viram, acharam que era tartatuga. Ou até cágado. Nunca um jabuti.
Com o de lá de casa não foi diferente. Um amigo do pai, o mesmo que
vendia pintinhos coloridos, me deu um jabuti. E era lento como os
outros. Não tinha muita graça ter um, a não ser na hora do almoço.
Eu cortava um pedacinho de alface com a mão e balançava no ar, perto do
chão, esperando que o touro quelônio avançasse. Ele olhava pros
lados com ar blasé, fingindo não ver. Não sei se ele ignorava de todo,
já que dizem que tem muito bicho piticego. Uma hora ele vinha
moroso, se arrastando, sem saber exatamente por que ia naquela direção e
abocanhava um vinte avos daquele já pedacinho. Das coisas mais
bonitas que existe é ver jabuti comer. A boca miúda, sem lábios, sem
nada. É só um risco na cara. Um risquinho. E só abre pra comer alface.
O jabuti não tinha nome porque jabuti já parece nome. É apelido
carinhoso do velho amigo de infância. Era desajeitado, como todo bom
mocorongo, fazendo cabaninha, se escondendo atrás do sofá e atrás
de qualquer coisa que tivesse um lado de trás. Não era casmurrice, mas
pura e simples timidez. Que o diga a carapaça, fruto de uma gimnofobia aguda. Freud explica.
Passei a me acostumar com a epifania do meio-dia e a comer mais e mais
alface. Ele, o jabuti, sempre ali de esguelha, esperando a sala ficar
vazia para surgir por detrás da cortina. Acho que confiava em mim e
desconfio que sabia do frisson que provocava a cada mordida. Assim ele
vinha, a passos de jabuti, mas agora com uma pressa pouco comum.
Um dia não tinha alface, só tomate. Ele veio mesmo assim. Descobri então que era daltônico.
Na semana seguinte, o grito da mãe
- Vai botar o lixo pra fora que o caminhão já vem!
Lixo na hora do almoço. É um absurdo. Mas criança que protesta leva chinelada na testa. Voltei correndo pra minha alface.
Os jabutis não sentem cheiro de comida, mas o meu sentia. Hoje deve estar resfriado.
Deve ter comido as folhas feias e queimadas no chão da cozinha.
Quanta indiferença.
Nos cantos da sala só havia arestas. E o almoço esfriou.
Não poderia ter sumido assim. Não sem despedida, sem me convidar para comer ali no chão frio da sala uma única vez.
Entrou no fundo do saco preto de lixo e se misturou aos restos da casa. Nunca mais o vi.
Foi assim que experimentei o primeiro amor. E a primeira perda.
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