Eu recebia uma bolsa muito mixuruca da AFS e a Ellen, my American mom, também me dava alguns dólares por mês. Tudo muito pouco, mal dava para os selos. Acreditava-se que os exchange students não precisassem de muito mais, afinal não estávamos ali para compras e talvez eles tivessem razão, não estivesse eu morando numa região de Chicago coalhada de sebos e de lojas de discos usados.
Sebos e lojas de discos usados. Eu não precisava de mais nada e ainda tinha o Michigan, enorme e tempestuoso (aquilo não podia ser só um lago), para as caminhadas.
Ainda na primeira metade de minha estadia, no fim da tarde de um outono que se despedia, entrei num desses lugares -- sebos e lojas de discos usados --, abrigos anti-barbárie. Comprei uma antologia de literatura inglesa e uma caixa com 5 discos com os quartetos do Shostakovich pelo Quarteto Borodin. Na verdade, com apenas os 5 primeiros quartetos. Juntei meus caraminguás e não tinha dinheiro suficiente. O total dava, digamos, uns 12 dólares e eu tinha uns 11 dólares e 33 centavos. O dono, gentil, perguntou se eu teria dinheiro para comer ao que respondi, mentalmente, com Drummond: "Como se não houvesse outras fomes / e outros alimentos."
Era primeira vez que eu me aventurava na música de câmera e fazia-o abalizado pelo meu apego a duas sinfonias do russo, a quinta e a nona. Naturalmente comecei a ouvir os discos em ordem e o problema é que o primeiro quarteto nada tem de memorável. Ou seja, as chances de desistência eram grandes. Não sei quantas repetidas audições foram até eu finalmente assimilar o terceiro, o quarto e o quinto quartetos -- todos obras seminais na literatura para quartetos do século XX.
Pode parecer precoce que o compositor russo tenha chegado a tamanho apuro formal já no terceiro quarteto, mas convém lembrar que a esta altura ele já estava na nona sinfonia.
Já escrevi por aqui sobre a minha teoria de que a música de câmera de Shostakovich é um rio subterrâneo. O terceiro quarteto é sublime. A passagem, quase sem pausa, do quarto para o quinto movimento é de beleza elusiva e indescritível. O staccato do segundo me persegue há anos. Tudo o que há de allegro aqui, o início mesmo, é enganador. Shosta exorciza os seus demônios. O final é uma epifania apocalíptica e desoladora.
E assim Dmitri Shostakovich mata e aumenta minhas outras fomes e alimentos, com seu pão de nuvens e minérios.
HOTEL TOFFOLO
Carlos
E vieram dizer-nos que não havia jantar.
Como se não houvesse outras fomes
e outros alimentos.
Como se a cidade não nos servisse o seu pão
de nuvens.
Não, hoteleiro, nosso repasto é interior
e só pretendemos a mesa.
Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras.
Tudo se come, tudo se comunica,
tudo, no coração, é ceia.
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