Wednesday, August 22, 2012

A Velha que Bebia Vinho no Penico



Penicos são já objetos de museu. Desça ao primeiro ponto de ônibus e pergunte quem sabe o que é isso, dirão que deve ser algo ligado ao mensalão ou sobrenome de algum BBB.

Eu mesmo, já nos 44 do primeiro? segundo? tempo só vi penico de verdade em uma ocasião: na casa da minha vó, que o tinha debaixo da cama. Acho mesmo que me lembro de vê-la agachada e envergonhada (até onde velhos se envergonham) usando-o, mas talvez seja invenção da memória. E por anos pensei que o Menino Maluquinho tinha um na cabeça, mas descobri hoje que é uma panela.

A bisavó do João Ricardo Lopes, meu poeta português preferido, dentre vivos mortos e por nascer, sabia usá-lo. Muito bem. E faço minhas as palavras finais do poeta.


COISAS DE FAMÍLIA

minha bisavó materna, proibida de beber, roubava vinho num penico
nos fundos da casa. as netas e filhas deploraram-lhe o costume num
furor de repugnância. vencidas pela teimosia, ameaçaram em vão com
o vexame público. rezaram então à providência por um pingo de lucidez
depois esconderam-lhe a chave da adega e o penico. mas a anciã
continuou até ao último dia da sua existência a preferir a insubordinação
às leis do bom senso (aliás, a todas as leis).
comia ovos crus e pedia esmola à puridade pelas ruelas da aldeia
não acreditava no diabo e dizia impropérios diante dos padres.
contam que morreu velha e louca, sem tristeza, com o saco de pedir
repleto de moedas de centavo.
ia a caminho de uma taberna, onde costumava comer amendoins e
jogar à sueca com os homens. uma vadia desavergonhada, contam


por isso te saúdo, velha louca insubmissa.
a natureza guardou-me na vida para que te fizesse justiça e te imitasse
em quase tudo

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