Descubro na sacristia da velhíssima Igreja de São Francisco Xavier de São Francisco interessante pintura de 1945 que retrata um clérigo (Anchieta?) em prédica a um índio. Embora ambos estejam quase no mesmo nível, o padre senta-se sobre uma pedra, ao passo que o íncola ajoelha-se (ajoelha-se!) no chão. A posição deste é de humilde subserviência, de total atenção às palavras divinas. O fato de a cena se passar não em uma igreja, mas numa praia, ou seja, no território do índio, demonstra a conquista dos territórios selvagens pela Santa Madre. A domesticação da natureza é de resto reforçada pelos animais que o clérigo acaricia e pela cobra, naja erguida não para o ataque mas para melhor sorver a palavra do Senhor. A índia trepada na árvore é como a naja. Os índios, aliás, são também animais que a Igreja acaricia, conquista, não por meios da porrada e da pólvora, mas pela catequese.
Não será exagero enxergar porrada e pólvora nessa ação evangelizadora, por tantos anos levada a cabo pelo catolicismo e hoje pelas igrejas crentes, que não se eximem de cobrar pesado dízimo de índios já miseráveis, pois pastor também precisa comer, vestir-se, comer crianças e mandar dinheiro para as Ilhas Cayman.
O estupendo vitral no que é hoje o quase centenário prédio da Secretaria da Educação, no passado nada mais nada menos que o Paço Municipal, permite leituras semelhantes. Embora tenhamos aqui o índio em primeiro plano, os padres, a enorme cruz e o livro (tambén no quadro há livro) trazem reverência e sujeição. Não há como não se lembrar de José Horta Nunes, em Formação do Leitor Brasileiro: "A falta de uma tradição escrita nos moldes europeus é argumento, inicialmente, para a negação aos índios da possibilidade interpretativa. (...) Atribuindo aos índios a 'ignorância' da escrita, os colonizadores dão um estatuto ao conhecimento deles, classificando-os como 'superstições', 'falsidades'."
1 comment:
O livro, o livre, e o vítreo. A arte sacra, como as demais, traz sua ideologia gravada no grande plano e nos detalhes também.
Parabéns pelo texto e pelo olhar sempre apurado.
abração
LuaR
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