É que Adélia, como aquela velha pobre de uniforme da empresa terceirizada responsável pelo volume da garrafa térmica, não existe.
Adélia não existe, vamos viver, vamos continuar como se ela não existisse, e, à força da prática, seu desaparecimento se dará.
Os defeituosos não existem. As crianças doentes, que têm síndromes e condições e necessidades especiais e o caralho a quatro não existem. A não ser, claro, para a indústria (melhor aqui seria falar em fabriqueta) paralela, parasita, miliciana, que cobrará 450 reais por um par de palmilhas porque sabe que Luna haverá de, forçosamente, pagar.
Um caso em especial não sai da cabeça de Luna.
Sabendo-se grávida, pensou em não ter o filho. Circunstâncias diversas, boas circunstãncias, fizeram-na optar pelo contrário. Uma dessas foi conversa de bar, em que um seu amigo, católico de boa cepa, prometeu-lhe total apoio, vamos ter esse filho e copos no alto para um brinde.
Quando foi diagnosticada a doença de Adélia, esse amigo, católico de boa cepa, desapareceu. Minto. Quem desapareceu foi Luna, ou entraria este texto em contradição. E, mágica inexplicável, desapareceram seu e-mail, seu telefone e mesmo seu prédio! (O amigo, católico de boa cepa, era também vizinho de bairro) Nem uma visita, palavra, mensagem. Na festa de um ano, claro, ele apareceu, porque é importante sair nas fotos. A diferença entre foto e filme.
Para estupefação de Luna, ainda cheia de vida e por isso com seu quê de ingênua, ela tornou-se invisível também para os pais desse amigo. Todos católicos de boa cepa, papa-hóstias, pagadores do dízimo, participantes do bazar pros pobres. Por três vezes -- três vezes --, esses senhores desviaram seus olhos de Luna, que lá vinha com Adélia no carrinho. Dia houve em que Luna cruzou com o pai do amigo, católico de boa cepa, no supermercado, vinham em direções opostas, na mesma ruazinha do mercado, agora ele vai me cumprimentar, mas o senhor, católico de boa cepa, jogou a cabeça para o chão, desviou os olhos, seguiu seu caminho.
Luna ficou chocada.
Tolinha. Não sabe Luna que o pai do amigo, católico de boa cepa, estava preocupado com as contas do dízimo da paróquia de Nossa Senhora das Dores? Não sabia ela que ele estava fantasiando um blowjob com aquela empregadinha que está dando mole pro sacristão?
Esqueceu-se ela que se tornara invisível?
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