Thursday, March 03, 2016

Os meus vizinhos têm caras feias

Bosch


Os meus vizinhos têm caras feias. Não cumprimentam, não cedem passagem, grunhem coisa e outra no elevador. Tudo isso porque deixo alguns brinquedos do Dante no play, quais sejam: uma bicicleta de rodinhas, um pneu velho, uma corda e uma bola grande, dessas de Pilates. Dante e eu nunca os deixamos espalhados pelo play, pelo contrário: ao fim da tarde, ter que guardá-los um a um num certo cantinho é já um pequeno ritual tão importante para aqueles com dificuldades de se organizar. Um dos frutos já veio: em conversa com a professora da sua ex-escola, esta me diz que Dante por vezes era a única criança que ajudava a arrumar as cadeiras depois das atividades.

Voltando aos vizinhos: têm caras feias, muito feias, e isso por causa dos brinquedos deixados num cantinho do play. Aqui esclareço: não os deixo lá por comodidade ou preguiça, mas sim porque me seria bastante difícil ter que descer e subir sozinho com a bicicleta e o Dante (às vezes batendo a cabeça nas paredes) todos os dias pelo elevador. Com o pneu e a bola, então, impossível. Deixá-lo lá embaixo e subir para pegar os demais objetos, criminoso.

Por isso deixo os objetos no play, deixamos. Num cantinho. E os vizinhos fazem caras feias. Já me ameaçaram inúmeras vezes com "sanções pecuniárias" por meio da administradora do condomínio.Chegaram a instar o zelador a retirar os objetos e deixá-los à minha porta. (O Fernando, sempre carinhoso com o Dante, descumpriu a ordem.) Houve dia em que encontrei o velocípede (que havia antes da bike) quebrado. Ambos os procedimentos parecem-me dignos das melhores técnicas de gas-lighting empregadas pelas ditaduras comunistas na segunda metade do século XX. Quem leu Herta Müller, que certa feita deparou-se com um dedo, um dedo humano, em sua bolsa, entenderá.

Apenas uma vez um deles veio conversar comigo, novamente ameçando de multa e dizendo imagina se cada um decide deixar alguma coisa no play. Repondi-lhe que se um dia sua mãe estiver com Alzheimer, serei o primeiro a aceitar que uma cadeira de rodas fique no play, se for o caso, se for necesário.

Aquando da primeira ameaça de multa, pelos objetos deixados nas áeras comuns e pelos objetos atirados pela varanda (um e outro lápis de cera, nada de pianos), respondi-lhes com uma carta, uma carta para cada apartamento, explicando a situação, explicando o que era autismo, convidando-lhes a visitar o Dante, caso quisessem.

Ninguém apareceu.

Tenho momentos de revolta, claro. Mas fico sobretudo perplexo. Imagino um desses vizinhos sentado em seu sofá de noite assistindo ao Jornal Nacional. De cara feia, muito feia, ao lembrar que num cantinho do play estão uma bicicleta verde-limão, uma bola vermelha, uma corda e um pneu velho.

5 comments:

Ivo Korytowski said...

As pessoas em geral são muito "caretas", quando passo na rua fico ouvindo fragmentos das conversas, estão sempre falando mal de alguém ou reclamando de alguém, assim preenchem o vazio de suas mentes, com picuinhas...

Camila Barroso said...

A mesquinhez do ser humano tem me impressionado cada vez mais! Impressionante a falta de cuidado com o outro, a maldade escondida por trás dessas "caras feias" que se dizem "politicamente corretas"!Tudo "venha a mim" e nunca "venha a nós"....!!!! Tristeza!Desanimo!

Nyc said...

Que absurdo! Preguiça do mundo e das pessoas. :/

Graziela Albuquerque said...

Perplexo. Disse tudo.
Isso é triste.
Mas não são só os vizinhos que têm essas caras feias, muito feias. São as pessoas. Pessoas humanas (ou desumanas).
Se não usassem suas caras mais feias pela bicicleta, e pela bola, e pela corda, e pelo pneu, seria por qualquer outra coisa. Ou por nada mesmo. Apenas usariam.

Graziela Albuquerque said...

Perplexo. Disse tudo.
Isso é triste.
Mas não são só os vizinhos que têm essas caras feias, muito feias. São as pessoas. Pessoas humanas (ou desumanas).
Se não usassem suas caras mais feias pela bicicleta, e pela bola, e pela corda, e pelo pneu, usariam por qualquer outra coisa. Ou por nada mesmo. Apenas usariam.