Meus conhecimentos de ornitologia são mais escassos do que eu queria, mas ou muito me engano ou este pássaro de louça há anos empoleirado no alto de uma casa no Grajaú é um pelicano.
O que é verdadeiramente assombroso.
Muitas casas do fim do XIX e começo do XX eram adornadas por águias, daí a minha coleção (aqui). Mas, pelicano?
O pelicano, todos o sabemos, é um símbolo cristão. Pelo fato de o penoso ter uma mancha no peito, associaram o bicho a Jesus, com a metáfora de que ele arrancaria um pedaço de si mesmo para alimentar a prole. Metáfora engenhosa.
Strindberg valeu-se dela em sua peça O Pelicano, de 1907. Uma porrada. Adélia Prado, embora muito católica, parece ter passado ao largo disso em seu poema homônimo.
Tenho hipótese para a presença do pelicano ali na rua onde morei. Tenho também notícias de um outro pelicano (será o mesmo?) em prédio oitocentista na Rua do Lavradio. E recém vi pelicanos na Oficina Brennand.
Isso tudo fica pro segundo post sobre o assunto. Por ora o poema da Adélia.
O pelicano
Adélia Prado
Um dia vi um navio de perto.
Por muito tempo olhei-o
com a mesma gula sem pressa com
que olho Jonathan:
primeiro as unhas, os dedos, seus
nós.
Eu amava o navio.
Oh! eu dizia. Ah, que coisa é um
navio!
Ele balançava de leve
como os sedutores meneiam.
À volta de mim busquei pessoas:
olha, olha o navio
e dispus-me a falar do que não
sabia
para que enfim tocasse
no onde o que não tem pés
caminha sobre a massa das águas.
Uma noite dessas, antes de me
deitar
vi - como vi o navio - um
sentimento.
Travada de interjeições,
mutismos,
vocativos supremos balbuciei:
Ó Tu! e Ó Vós!
- a garganta doendo por chorar.
Me ocorreu que na escuridão da
noite
eu estava poetizada,
um desejo supremo me queria.
Ó Misericórdia, eu disse
e pus minha boca no jorro daquele
peito.
Ó amor, e me deixei afagar,
a visão esmaecendo-se,
lúcida, ilógica,
verdadeira como um navio.
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