Saturday, November 03, 2012

Os Gatos de Ana




Ganhei de presente outro dia um poema da Ana. A Ana Cristina César. Depois descobri tratar-se de um soneto, um soneto disfarçado, mal disfarçado, que essa geração não queria saber de sonetos, ou queria, mas cumpria disfarçar essse querer. Não conheço sonetos do Francisco Alvim nem do Armando. Já o Tite de Lemos, bem, o Tite foi aquilo que se viu: um dos meus mestres soneteiros, macaco de auditório que sou.

Depois, pesquisando um pouquim, descubro outro soneto mal disfaraçdo da moça que usava lentes escuríssimas sob os pilotis. Esse mal disfarçado mesmo, ao citar o Jorge.

Quado digo disfarces, não estou absolutamente diminuindo em nada os poemas. Ambos são lindos. E sobre gatos. Arrisco dizer que Ana queria e não queria o rigor. Mas tudo foi tão rápido para ela.

(E o que fazer ao ganhar poema de Ana? Na confusão, respondo com o que tenho às mãos, alegres: "Encontro", do Montale.)


O nome do gato assegura minha vigília

O nome do gato assegura minha vigília
e morde meu pulso distraído
finjo escrever gato, digo: pupilas, focinhos
e patas emergentes. Mas onde repousa

o nome, ataque e fingimento,
estou ameaçada e repetida
e antecipada pela espreita meio adormecida
do gato que riscaste por te preceder e

perder em traços a visão contígua
de coisa que surge aos saltos
no tempo, ameaçando de morte
a própria forma ameaçada do desenho
e o gato transcrito que antes era
marca do meu rosto, garra no meu seio.

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queres gato: tira do teu ventre

morno medida de tua garra,
o formato e as unhas te fazendo,
tuas certezas, teu único sonho, botas e

cobertas que também desfazem teu salto
e se apronta para sobrevoar o campo alheio
e se lançar meio tigre sobre as marcas
que não sabes nem sabes repousar, e os gemidos

de fome em gato não ouças, mas vive
os cantos da casa e os pêlos amedrontados
e a ameaça acordando o nome gasto

e se deita depois num lento revirar ignorado,
torna a escrita e o desenho que ressonam
desconhecidos traços te seguindo.

[d’après Jorge de Lima - Invenção de Orfeu I, XVIII]

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