Pensando estar atrasado para a consulta,
entrei esbaforido no consultório para a grande visão desconsoladora: ele estava
lotado. Fui ter com a secretária, achei o último lugar vago e sentei-me, entre
um menino de seus 10 anos e um senhor que cochilava. Ao levantar a cabeça, vi
que tirante o menino e o senhor que cochilava e que já começava a se reclinar
para minha direção, todos os demais entretinham-se com o celular, de onde tirei
que celular é o melhor analgésico. Deixemos de ironias, talvez não estivessem
ali para tratar de dor lancinante, mas para simples rotina. Ou para ajeitar obturação,
ponte, canal, retirar pontos, renovar curativo ou quem sabe não fosse um deles
amante da Dra. Roseny, sortudo, porque eu bem que queria mas sabia das minhas
limitações.
-- Moço? – o menino ao meu lado puxou papo.
-- Hum.
-- Você viu que o espírito de porco lá da
minha rua pegou fogo?
-- Como é que é?
-- Isso, o espírito de porco da minha rua
pegou fogo.
-- Espírito não pega fogo – respondi, achando
alguma graça naquilo, mas ele nem percebeu.
-- Pega sim, moço. O da minha rua pegou.
Morreu gente, até. Morreu um velho, morreu uma moça que dizem que foi ela que
começou o fogo.
-- Mas como assim, garoto? Como um espírito
de porco pegou fogo?
-- Ué, ninguém sabe direito ainda como foi.
Dizem que a moça que começou o fogo estava bêbada e que ela começou o fogo
porque o Carlão deixou ela.
-- E quem é Carlão? É o espírito de porco?
O garoto deu uma risada gostosa:
-- Que isso, moço?! O Carlão é o mecânico.
Dizem que ele deixou ela, ela ficou puta, tacou gasolina em tudo e acendeu
fósforo. Depois ela mesma morreu, eu achei bem feito mas minha mãe disse para
eu não dizer mais isso.
Não sei bem por quê, perguntei abaixando a
voz:
-- É essa a sua mãe? -- apontando com a
cabeça para a mulher ao seu lado.
O menino deu uma gargalhada:
-- Que isso, moço?! Essa é minha irmã! Minha
mãe tá no serviço.
Nisso o amante da Dra. Roseny à nossa frente
levantou a cabeça para olhar-nos. Sustentei o olhar, que isso seu babaca, tu
daqui a pouco entra lá, come a Dra. Roseny e vem vigiar minha conversa?
-- Humm. Mas tua mãe pediu pra você não dizer
isso, isso de que foi bem feito pra mulher que morreu, e você tá dizendo.
O menino hesitou:
-- Não.
-- Não o quê?
-- Agora eu não estou dizendo. Eu estou
dizendo que eu disse.
Arregalei os olhos genuinamente espantado com
a sua argúcia. Esse garoto iria dar muito trabalho às mulheres nas discussões,
pensei.
-- Conta mais, garoto.
-- Não tem mais nada. É só isso. O espírito
de porco pegou fogo. Morava muita gente lá, além do Carlão, da mulher que pegou
fogo e do velho. Tinha uns garotos lá que às vezes jogam bola com a gente, mas
deles ninguém morreu.
Nisso entendi o que o garoto queria dizer:
Cabeça de porco! É isso! O garoto aqui está querendo dizer cabeça de porco e sorri um sorriso enorme, como uma criança ao ver
pinguim pela primeira vez, rindo-me por dentro, como há muito não fazia, como
nunca na sala de espera daquele consultório. É isso! Cabeça de porco e veio-me
à mente o cabeça de porco primeiro situado na Gamboa. Veio-me aquela ilustração
grotesca que um dia o professor de História do terceiro ano trouxe para a
turma: a de uma enorme barata sobre a cabeça de um porco morto, representação
da época para a vitória do prefeito Barata Ribeiro sobre a resistência do
enorme cortiço.
Eu já ia corrigir o garoto, triunfante,
quando outra coisa ainda veio-me à cabeça, uma lembrança que chegava
esbaforida, antes que eu abrisse a boca. Lembrei-me que também eu vivera na
infância o incêndio de um cabeça-de porco, aquela enorme construção decrépita
que ficava na minha rua Visconde de Santa Isabel e que abrigava dezenas de
famílias, centenas de pessoas, resquício de um Rio pré-Pereira Passos
sobrevivendo em meio ao bairro-jardim e que se não enfrentava mais impropérios
e humilhações, era porque simplesmente os moradores acostumaram-se com o
cortiço, aceitavam-no como parte da paisagem e ele, afinal, não incomodava
ninguém. Na verdade, melhor até do que não incomodar, era o cabeça-de-porco que
fornecia cerveja para a fina-flor da sociedade do bairro-jardim quando todos os
botequins e mercados já estavam fechados, e era o cabeça-de-porco que tinha um
quartinho nos fundos onde a Leninha recebia os filhos da fina-flor para que
fossem iniciados nas delícias da carne.
Aliás, se não me engano, nele também funcionava,
no que outrora fora a garagem do que outrora fora um hospital (diziam) uma
mecânica. E, agora eu tinha certeza, um dia ele também pegou fogo, numa manhã
de dia da semana. Minha mãe, com grande excepcionalidade, deixou que eu
descesse, embora já se avizinhassem as horas do banho, do almoço, do ônibus
escolar. A chance de poder descer para a rua, numa manhã de dia de semana, era
para não se perder. Talvez por isso me lembre tão bem. Cheguei rápido ao local
de onde vinha a fumaça, morávamos em pequeno prédio no alto da rua, bastava
descer a ladeira, portanto. Ao tomar lugar, tímido, para assistir à operação
dos bombeiros, vi que garotos à minha frente, com quem eu nunca brincava.
olhavam para mim desdenhosos: “Ih, olha só quem desceu”.
Tive ganas de abraçar aquele menino, mas ele
já tinha até se levantado, puxado por sua irmã, olhando para trás numa
tentativa de aceno.
Acenei triunfante, levantei triunfante, fosse
à merda a obturação. Atravessei correndo o Buraco do Lume e parei no Café
Gaúcho, onde pedi um chope, com coquinho, e brindei aos flocos de lembrança da
Leninha que ainda se demoravam na minha cabeça.
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