Wednesday, March 01, 2017

Ferrugem, de Marcelo Moutinho, ilustrado



Na dedicatória para mim, Marcelo Moutinho escreveu em seu Ferrugem, no alto da folha de rosto, "Para o Evandro, estes contos com o pé na rua". Eu diria que os treze contos que enfeixam o volume têm mesmo mais que um pé na rua e sendo esta obra imediatamente posterior à deliciosa antologia que organizou com o Luiz Antonio Simas há dois anos, O Meu Lugar, talvez não pudesse ser diferente.

E aí, sendo manhã de quarta-feira de cinzas, e sendo hoje o aniversário da cidade, quis encontrar algumas fotos minhas que ilustrassem alguns trechos dos contos, já que gosto desse negócio: a correspondência entre texto e imagem, numa relação menos de subordinação que de coordenação, numa pretensão mesmo de se criar um terceiro lugar.

Claro que eu poderia escolher trechos, pegar o Nokinha e sair para fotografar. Mas julgo que, ao menos por ora, seria mais interessante usar imagens que eu já tinha.


Conheci o Custódio aqui no 362. A linha vai da Praça XV a Honório Gurgel. Meu expediente começa de manhã cedo. Todo dia o Custódio pega o ônibus no ponto da Mem de Sá, mais ou menos em frente à Casa da Cachaça. É uma sujeira só aquele ponto. Os garotos ficam bebendo até tarde e deixam copo sujo, garrafa vazia, até pedaço de cadeira eu já vi.



Então consigo um tempo para olhar para fora. Aquele monte de casa sem pintura, colada uma na outra, as passarelas, os depósitos, as entradas de garagens dos motéis, as fábricas. Olho pela janela e fico pensando que todo mundo que chega e sai passa por aqui, pela roleta do ônibus. Parece que tudo só funciona, só se mexe, só acontece, porque o 362 faz seu trajeto dia após dia. Que, se não fosse o 362, não haveria ninguém na cidade, só construção, cimento. Um silêncio danado. Eu até gosto de silêncio.



No embalo dos novos ventos, o Vila Rica cumpria um campeonato acima da média recente. Vencera os jogos contra Madureira, Campo Grande, Bonsucesso, Olaria e São Cristóvão, e chegara a arrancar um empate contra o Flamengo. As derrotas para Fluminense, Botafogo e Bangu não impediram o clube de chegar à vice-liderança. A três rodadas do fim do torneio, faltava enfrentar Portuguesa, América e Vasco.



A estrela, acesa, incrementava o luminoso da chapelaria. Resistia, como aquela loja de chapéus num tempo em que ninguém mais compra chapéus.



Quando acabei de pegar no sono, o Vítor tocou lá em casa, preocupado. -- Quer tomar uma cerveja? -- A essa hora? -- e no mesmo momento me surpreendi pela inversão de papéis: ele, topando ir beber às oito da manhã para consolar o amigo; eu, o amigo, acionando os mecanismos do rigor. -- É. Agora. Partiu Nova Capela.



Caminhei por três ou quatro quarteirões, as ruas vazias, até ver um táxi. -- Para a Glória, por favor. O taxista parecia concentrado no noticiário estridente de uma rádio AM. Entre curtos boletins do tempo e do trânsito, debatia-se uma pesquisa segundo a qual o hábito de comer à noite atrapalha o ritmo do organismo. Ele não puxou papo. -- Senhor... -- tomei a dianteira. -- Pode falar. -- O senhor sabe falar inglês?

A segunda parte, aqui.

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