Thursday, March 18, 2021

Dante, aulas remotas, nós

Quando começou essa história de aulas remotas, pensei logo 'Não vou conseguir'. Entravam aí, claro, insegurança e contumaz desacerto com internet. Entrava aí minha preocupação com o Dante, eu tendo que estar com ele, ele atrás de mim, eu me lembrava do Robert Kelly dando entrevista para a BBC: entra a filha dançando, entra o bebê no andador, entra a mãe desesperada atrás, puxando filha filho andador e porta. Foi engraçado mas preferi ver a resposta a isso: se fosse mulher, ela iria sentar a criança no colo, dar de mamar se necessário e continuar a entrevista.

Nela me inspirei quando anuí: partiu, mas vai ser como der, como for possível, tenho filho autista em casa e, como já se disse, tão acertadamente, "não são os filhos que invadem o trabalho, foi o trabalho que invadiu a vida de filhos e família".

Quando o filho é autista, a parada complica, quem disser que é a mesma coisa leva sopapo. Virtual.

Dei um curso sobre Pink Floyd que ia das 7 às 7:50. Estive à frente de uma roda de conversa chamada "(Precisamos falar sobre) Autismo na Quarentena", que ia das 7:50 às 8:40. Éramos só nós dois. E tantas outras aulas e orientações. Minha tranquilidade é ouvir o ranger da rede, ao menos sei onde ele está e que está bem. Os alunos também ouvem o ranger e sabem onde está o Dante.

Num dia de roda de conversa, ele estava muito quieto, o que não é bom sinal. Quando terminei, vi que ele arrastara a poltrona para o meio da sala e nela se refestelara com seu tablet. Suspirei. Tá, Dante, você quer mais chocolate? 

Num dia de Pink Floyd, analisávamos e ouvíamos o The Wall enquanto da sala vinham barulhos preocupantes e depois um silêncio ensurdecedor. Terminada a aula, corri para lá apenas para encontrá-lo pelado na rede, as quatro cadeiras da mesa da sala na varanda. Assim que me viu, falou em sua língua tonal, como se me visse pela primeira vez: Papaaaaaiii!

Mas foi depois do último encontro das conversas sobre autismo que ele executou sua magnum opus. O padrão se repetiu: primeiros barulhos suspeitosos, depois o silêncio desejado por Hamlet. Quando cheguei na sala, a poltrona estava no centro, o sofá bloqueava a porta da frente e as quatro cadeiras, grandes, empilhadas na cozinha.

Dante estava sentado sobre a quarta cadeira, devidamente entronado, Sua Majestade, como na música do Trio Nagô. Estava quieto e feliz. Sorria. Quando instintivamente levei minha mão à cabeça, ele viu minha testa e, como sempre, pediu para beijá-la a seu modo:

 Bibiiiiii!

Ao que respondi:

Eu também te amo, meu filho.

 

Hoje nos acostumamos um pouco. Ele às vezes vem e se senta no meu colo, gosta de olhar os rostos na tela do computador, mas por pouco tempo. Outras vezes pede beijos,  shantalas, balões. E pede sempre que eu deixe a porta aberta, no que o respeito totalmente. 

 

PS: Publiquei este texto no final do ano passado, mas o reescrevi, aumentando-o. E a postagem mais bonita com a almofada linda que a Graça nos deu hoje

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