Thursday, September 17, 2020

Nunca


Conduzi por quase dois meses uma roda de conversa, remota claro, sobre autismo. Direcionada aos responsáveis do Colégio de Aplicação da UFRJ, mas não limitada a eles. Participaram também profissionais do Serviço de Orientação Educacional e do Núcleo de Educação Especial e Inclusiva do colégio, que muito agregaram.

Como, por força das férias, eu não poderia estar presente a alguns encontros, convidei o Luiz Fernando Vianna, autor do lindo Meu Menino Vadio : Histórias de um Garoto Autista e seu Pai Estranho, já devidamente mencionado aqui e aqui.

Luiz Fernando aceitou o convite. Depois declinou. Disse estar passando por uma fase difícil com o Henrique, especialmente difícil por causa do isolamento social, e que portanto não se sentia à vontade para conversar sobre o tema. Talvez não tivesse as 'melhores' palavras no momento.

Eu entendo. Muuuito bem. Agradeci de coração, desejei-lhe força e, de modo a fazê-los presentes em nosso último encontro (sou insistente, aprendi com o Dante), li para o grupo o último capítulo do seu livro, 'Nunca': (Confesso que na ocasião fiz algumas pequenas edições -- não censura! --, afinal estávamos em ambiente escolar e não eram nem 9 da manhã.)

O capítulo ::

Meu filho nunca saberá completamente a dor e a delícia de ser o que somos, mas quem sabe?

Nunca se consumirá de êxtase na paixão mais incendiária, aquela que o faria pleno, conectado ao centro do sentido de estar vivo, abolindo qualquer fronteira entre passado, presente e futuro, entre perto e distante, pois convicto de que tudo o que importa se dá aqui e agora, e assim será sempre. 

Mas também nunca se consumirá de desespero na paixão mais incendiária, a mesma que, dias antes, o deixara pleno, certo de que seu futuro seria tão maravilhoso quanto o presente -- que agora já é passado.

Jamais sentirá seus órgãos se esfarelarem, virarem cinzas que não param de queimar e corroem todos os ossos, do calcâneo aos chifres, dor que pode aniquilar qualquer vestígio do que um dia foi um animal racional, tornando essa besta-fera capaz de, em nome de uma solução para sua agonia, visitar a torcida do Vasco com a camisa do Flamengo, agarrar a mulher do Capitão Nascimento ou, pior, implorar perdão e cantar de joelhos “volta, vem viver outra vez ao meu lado” para a pessoa responsável por toda essa desgraça.

Talvez nunca foderá, nunca tomará porre com amigos, nunca terá amigos.

Mas nunca brochará, nunca terá ressaca e nunca romperá amizades.

Não namorará.

Nem casará! Nem se separará!

Não dará orgulho à família como brilhante médico, notório advogado ou aclamado artista.

Mas não será jornalista.

Nem político reacionário. Nem subcelebridade.

E copio Argemiro Garcia: “Duvido que ele venha a se tornar um canalha. Isto nunca ouvi falar que um autista fosse.”

Com suas poucas e quase incompreensíveis palavras, meu menino será o exemplo de concisão que sempre sonhei ser. Palavra desnecessária não é para ser dita. É o que ele diria se pudesse ou achasse necessário.

Nunca lerá Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Raduan Nassar.

Nem colunistas neofascistas, comentaristas de internet e jovens escritores achando que são os novos Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Raduan Nassar.

Henrique nunca será absolutamente louco a ponto de largar família e emprego. Jamais sonhará com o impossível.

Mas será sempre um pouco louco. E, possivelmente, um sonhador, mesmo que os outros não saibam com o que sonha.

Meu menino nunca será totalmente feliz. Mas quem o é?

E nunca, tomara, será irremediavelmente infeliz.

E tantos o são, não?

1 comment:

Golden Way Media said...

I enjoyed reading your blog, thanks.