Eu passava o dia debruçado sobre a mesa de botão, escapava umas duas vezes por dia pro banheiro para pensar nas beldades do São José, e amava loucamente uma banda que então era só minha, os Beatles, mas nada, nada me deixava mais feliz nos anos da pré-adolescência e do início desta do que jogar bola na rua.
A rua em questão era a Visconde de Santa Isabel, que para ser nobre e fiel ao nome, nasce na Vila, na praça do barão que inventou o jogo do bicho e onde se assenta o monumental Convento da Ajuda. De lá ela prossegue, ladeia o Antigo
Zoológico, assiste ao início da Grajaú-Jacarepaguá para tornar-se,
irreconhecível do que fora, Grajaú. Com efeito, o trecho iniciado logo
após a estrada, uma colina em cujo cimo situa-se exatamente o 486 onde
morei e que depois aplaina-se para enfim terminar depois da Canavieiras
(em área que já foi tão bucólica que o time do Fluminense concentrava-se
ali), em nada é semelhante ao seu troço inicial, no bairro de Noel.
Dir-se-iam duas ruas diferentes.
Ali é Grajaú, literalmente Alto Grajaú (ninguém usa essa terminologia, só essa crônica), onde morei no pequeno prédio de três andares e seis apartamentos e
muitos escadas bem no alto da colina e bem no centro da curva. Ali, com
colina e curva, fazia o que mais amava na vida: jogar bola na rua. Os
companheiros eram Cláudio, Caco, meu irmão, Branquinho, Branco, às vezes Dentinho e
Mamão. Não adianta procurar no facebook, de nenhum sei sobrenome; na
verdade sequer o nome dos quatro últimos. Havia ainda os odiosos irmãos
César, Marco Antônio e André. E havia o Marcelão. Amigos de verdade eram
Cláudio e Caco. Branquinho era solerte e Branco a vítima inclemente do
bullying. Dentinho e Mamão não fediam nem cheiravam e o Marcelão era Marcelão, grande, gordo,
afável, vascaíno, a barriga escapando da camisa. Creio que circulava bem
tanto entre nós quanto entre César e Marco. Não brigava, não xingava,
sempre amável que era. E pelo físico, sempre goleiro também.
Como disse, jogávamos precisamente no trecho da curva, precisamente no trecho de leve inclinação. Não me lembro, no entanto (hoje que time perde jogo e se defende argumentando que estava contra o vento), de escolhermos no par ou ímpar lado do campo ou frescuras do tipo. Poucos carros passavam e a chegada de um era logo sinalizada por um indefectível "Parôôôôôô!..." Continuar a jogada ou, pior, chutar a gol depois desse aviso era motivo de intermináveis arranca-rabos. Jogávamos uma partida atrás da outra, um monte, o tempo todo discutindo o tempo todo xingando, nós que nos amávamos tanto, até que as cigarras começassem seus gritos e com elas mães começassem a nos chamar da janela e um a um nos recolhêssemos cabisbaixos : "Vou chegar".
Acho que me lembro de todos os jogos, acho que me lembro de todos os lances. Lembro-me de um gol que fiz, ilegal. Ralei a perna toda. Enquanto Caco e Claúdio recusavam-se, acertadamente, a reconhecer o gol, eu mentia, mentia com uma convicção que até hoje me assusta e encanta.
Hoje não vejo ninguém, nin-guém, jogando bola na rua. E eu que procuro evitar a queda na nostalgia fácil, não posso deixar de, como Bashô em Kyoto, sentir saudades do Grajaú. Ao andar no Grajaú.
2 comments:
No que diz respeito a jogar " pelada na rua" coisa que eu adorava, foi quando foi morar na minha rua uma família israelita (não digo judia para não parecer anti semitismo) que proibiu que eu e meus colegas jogássemos o futebol na rua, até chamando a rádio patrulha.
Foi um dos maiores desgostos que tive na minha mocidade. Acabou o futebol de rua, numa rua que quase não passava carro.
Você convence quando quer. ..
Ri muito no penúltimo parágrafo
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