Virei o ano de 1990 lendo O Som e a Fúria. Minha avó me chamava para a mesa, receosa de que eu passasse o momento tão importante deitado, com a cara enfiada num livro, e não de pé, vestindo branco, comendo e bebendo. Faltando dois minutos para o novo ano, levantei, sentei-me à mesa, beijei e abracei vó, tia e tia-avó, provei do manjar, repeti duas vezes e voltei para o livro. Estava no dificílimo segundo capítulo, naquele estado que Osman Lins chama de incompreensão ativa, mas confiante de que algo me iria ser revelado. De fato, no quarto e último capítulo, numa manhã cinzenta de 1928, minhas esperanças haveriam de se confirmar. Era Páscoa.
Li depois o romance em inglês, reli em português, reli em inglês, e fui para o Mississipi conhecer alguma coisa, qualquer sinal, daquela atmosfera que me impregnara a alma. De posse do mapa que o próprio Faulkner esboçara, vaguei pelo condado de Yoknapatawpha. Haverá quem me chame de materialista, pela necessidade que tive de ver e conhecer empiricamente o que deveria permanecer no domínio exclusivo do imaginário. Em primeiro lugar, terei que admitir que sim, sou materialista. Em seguida, agradecerei a Faulkner por me ter permitido viajar duplamente.
Uma longa introdução em tão curto texto para explicar que me alegrou sobretudo encontrar em Juan Carlos Onetti um leitor de Faulkner. Um leitor tão apaixonado que toma emprestado uma fala de um dos personagens para justificar a extensão de sua obra: “Mujeres!”. Um leitor tão apaixonado que não hesita em fazer, de personagens e autor, cúmplices de sua vida e obra. É assim que William Faulkner está presente em diversas das reflexões, às vezes como Bill, outras como Billy. Nessa cumplicidade, nessa literatura que se une à vida qual carne e unha, não é difícil equacionar ler = viver.
No seu campo dileto de reflexões, Onetti irá tratar da complexidade da obra de Faulkner, dos problemas e consequentes erros dos tradutores (nem Borges escapa), das dificuldades pessoais do autor, dos pastiches que sua obra sofre. Dessas reflexões, focalizo duas. Na primeira, Onetti relata que, em 1949, no ano em que Faulkner ganha o Prêmio Nobel, era impossível encontrar seus livros nas livrarias dos Estados Unidos, pois suas páginas haviam sido destruídas sete anos antes para a fabricação de cartões. Neste aspecto trágico, não resisto em recordar nosso romancista Dalcídio Jurandir, cujos livros eram impressos, segundo circulava à época, com a sobra de papel dos livros de Jorge Amado. Embora em posições inversas, um e outro fadados ao convívio dos refugos da indústria cultural. A outra confissão que destaco é aquela em que Onetti rememora seu encontro peripatético com seu escritor. Por uma casualidade, entre carros e pedestres, ele chega, pelas páginas da revista Sur ao Deep South.
Na leitura de Onetti, vali-me de meu imprescritível segundo direito, conforme nos ensina Pennac. Mas, ainda assim, destacaria outras questões bem pontuadas; nada, porém, que se igualasse ao reencontro com Faulkner que suas reflexões me proporcionaram.
1 comment:
O meu, comprado na Eldorado da Tijuca nos anos 80 (sim, eu sou um pouco mais velho que vc, meu caro), sempre fez me sentir pequeno, incapaz, impotente.
Mas é bom conhecer alguém que o decifrou! E ainda ser amigo dessa pessoa.
P.S. As manhãs de sexta são mais escuras sem vc!
Raul
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