Foi num domingo de manhã do ano passado, Dante e eu acampados na casa da minha mãe. Saímos para o passeio no triciclo e então me aventurei a subir até o alto da Visconde de Santa Isabel para mostrar-lhe onde morei de 74 a 80 e, voltando de um exílio no Andaraí, de 85 a 95.
A Visconde de Santa Isabel nasce em Vila Isabel, ladeia o Antigo Zoológico, assiste ao início da Grajaú-Jacarepaguá para tornar-se, irreconhecível do que fora, Grajaú. Com efeito, o trecho iniciado logo após a estrada, uma colina em cujo cimo situa-se exatamente o 486 onde morei e que depois aplaina-se para enfim terminar depois da Canavieiras (em área que já foi tão bucólica que o time do Fluminense concentrava-se ali), em nada é semelhante ao seu troço inicial, no bairro de Noel. Dir-se-iam duas ruas diferentes.
Como disse, morei no pequeno prédio de três andares e seis apartamentos e muitos escadas bem no alto da colina e bem no centro da curva. Ali, com colina e curva, fazia o que mais amava na vida: jogar bola na rua. Os companheiros eram Cláudio, Caco, Branquinho, Branco, às vezes Dentinho e Mamão. Não adianta procurar no facebook, de nenhum sei sobrenome; na verdade sequer o nome dos quatro últimos. Havia ainda os odiosos irmãos César, Marco Antônio e André. E havia o Marcelão. Amigos de verdade eram Cláudio e Caco. Branquinho era solerte e Branco a vítima inclemente do bullying. Dentinho e Mamão não fediam nem cheiravam e com os irmãos o tempo quase sempre fechava. O Marcelão era Marcelão, grande, gordo, afável, vascaíno, a barriga escapando da camisa. Creio que circulava bem tanto entre nós quanto entre César e Marco. Não brigava, não xingava, sempre amável que era. E pelo físico, sempre goleiro também.
Eu lembrei disso tudo enquanto empurrava o triciclo que rangia já fraquinho sob o peso do Dantinho. Descemos pela Mearim puxando o freio de mão e então pegamos a Marechal Jofre (e assim o Grajaú homenageia a França na Grande Guerra: Jofre e Verdun) para voltar à Júlio Furtado. Na esquina da Professor Valadares, paro de empurrar e abaixo para conversar de perto e trocar afagos. Seguimos. Na esquina da Itabaiana quem encontramos? Claro, o Marcelão.
Não nos víamos há mais de trinta anos. O reconhecimento foi imediato. Ele é o mesmo.
Quando conto a história à minha mãe, que então esquentava o feijão do pequeno, ela diz:
-- Olha, meu filho, eu sei que você não acredita nessas coisas, mas isso tem um nome.
-- O quê, mãe?
-- Espiritismo -- ela responde em tom sério, quase soturno, como que se a revelar segredo.
Sempre que rolam diálogos assim entre mim e minha mãe, tenho que segurar
o riso, o que faço de má vontade, pois gosto de rir. Ela reclama, não sem alguma razão, que
debocho.
Mas, tá, e o porquê disso tudo? Porque eu realmente não acredito em nada
disso, essas coisas me fazem rir a bandeiras despregadas.
Mas que o Dante, com sua West, com seu autismo, tem um sexto sentido, isso tem.
E assim termina a crônica memorialística, cheia de lacunas. Espiritismo.
PS: Será que o Marcelão ainda joga no gol?
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