Em 1946, Manuel Bandeira lançou uma Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, em cuja introdução escreveu: "Poeta bissexto deve, pois, chamar-se aquele em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil. Esquematização grosseira. Em suma, bissexto é todo poeta que só entra em estado de graça de raro em raro." A antologia apresenta 35 poetas e traz nomes interessantes e improváveis, como os de Afonso Arinos de Melo Franco, Aurélio Buarque de Holanda, Di Cavalcanti, Euclides da Cunha, Maria Clara Machado, Rodrigo Melo Franco de Andrade (contista também bissexto, mas cujo Velórios é dos melhores que há na nossa literatura) e Rubem Braga. E, lado a lado (sim, o índice não é pelo sobrenome): Pedro Dantas e Pedro Nava.
O curioso, a coincidência, é que esses dois sujeitos já haviam vivido próximos, na Aristides Lobo, no Rio Comprido, como bem nos lembra Nava em Baú de Ossos:
"(...) onde estava, em casa dos avós, um menino que eu ainda não conhecia. Chamava-se Prudente. Chama-se Prudente de Moraes, neto, aliás Pedro Dantas. Meu vizinho na infância. Contemporaneamente nos impregnamos na Rua Aristides Lobo como se fôssemos esponjas. Quando as esprememos, por volta dos anos trinta, dele veio A Cachorra e de mim, o Defunto. Poemas do Rio Comprido. Poemas da frustração do corpo, de sofrimento de alma e corpo, da miragem de qualquer depois, nos aléns da vida e ou nos aléns da morte. Tímida esperança de recomeço, de purificação, de retomada... Em que ondes? em que quandos?"
Ambos os poemas estão devidamente antologizados no livrinho de Bandeira e digo mais: são um dos pináculos de nossa poesia. Travei contato com os dois no ano mesmo em que comecei a ler / devorar poesia a sério: em 1984, aluno do 2o ano do Ensino Médio no São José, idade e locais próprios para frustrações do corpo. De tal modo vivem em mim, que aqui mesmo neste blog fazem-se presente: de "A Cachorra" usei o verso final para descrever o que me causa o terceiro movimento do terceiro concerto para piano de Prokofiev; de "O Defunto" simplesmente roubei o primeiro verso para o meu poema para as figueiras.
Seria crueldade não citar ao menos o início dos poemas:
A Cachorra
Veio uma angústia de cima,
Pelos ombros me agarrou,
No mais fundo do meu peito
Sua lâmina cravou.
Depois que no chão desfeito
O meu corpo estrebuchou,
Pelos cabelos a fera
Sobre pedras me arrastou.
O Defunto:
Quando morto estiver meu corpo,
Evitem os inúteis disfarces,
Os disfarces com que os vivos,
Só por piedade consigo,
Procuram apagar no Morto
O grande castigo da Morte.
PS: Estive há pouco na Aristides Lobo, em busca da casa de Pedro Dantas, que fazia esquina com a Rua da Colina. O sobrado de Nava eu já sabia derrubado. Nada, nem uma parede. O nome mesmo da Colina se foi, transformado em Quintino do Vale, como também se foram os nomes Rua Leste, Rua do Morro, Rua da Paz. A Aristides Lobo, é pena, envelheceu mal. Seu início é de uma sensaboria lamentável. Que poemas, que poetas poderá ela hoje inspirar?
1 comment:
Evandro, eu também já percorri a Aristides Lobo procurando a casa de Nava e outras. Quase nada restou. Na verdade, algumas do lado ímpar, ficaram, como o belo 229, ainda com o quintal e as palmeiras imperiais, creio que descritas pelo Nava.
Helion
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